As imagens proporcionadas pela ficção científica trouxeram para o imaginário popular uma visão equivocada a respeito do futuro – ao menos do futuro próximo – das vidas. Deixando de lado as promessas de veículos voadores utilizados em massa e de construções mirabolantes, a discussão a respeito do planejamento dos espaços urbanos para os próximos anos é uma questão a ser posta em prática agora. E foi um tema presente ao longo de toda a programação do festival REC n
Play, realizado entre os dias 16 e 19 de novembro, no Bairro do Recife.
Especialista em planejamento urbano, Claudio Marinho foi palestrante convidado em diferentes painéis sobre o assunto no festival. Ele salienta que, apesar de a tecnologia ser um fato indispensável no processo de pensar o urbanismo, é preciso cautela ao usar o termo cidades inteligentes. “Uso como força de expressão a ideia de que não existem cidades ‘inteligentes’ porque não existem cidades ‘burras’”, afirma. “Com isso, quero dizer que é uma falácia perigosa imaginar uma ‘cidade dos Jetsons’ como o futuro desejado das cidades”, acrescenta.
Enquanto no desenho animado os Jetsons circulavam com seus carros voadores entre construções suspensas nas alturas, o futuro da vida real se desenrola de uma maneira completamente distinta. A preocupação com o amanhã, acredita Marinho, não deve ser pautado por essa visão tão presente na ficção. “É perigoso, porque desvia a atenção da política pública e dos cidadãos para um solução falsa, tecnológica no estrito senso, dos problemas urbanos. Devemos usar tecnologia, sim, e muita, para enfrentar os graves problemas das cidades”.
Hoje, segundo o censo demográfico de 2010, o último realizado pelo IBGE, a população urbana do Brasil é de 160,9 milhões de habitantes, 84,3% da população total. Dado esse contingente, Claudio Marinho aponta que “nossos desafios de sobrevivência e de vida melhor estão intrinsecamente ligados aos problemas urbanos”.
E, para ele, a maiores dificuldades não estão relacionadas a infraestrutura ou serviços, mas são complexas dos pontos de vista sociológico, antropológico e econômico. A sugestão do especialista é “uma abordagem integrada, baseada em tecnologias habilitadoras da vida em sociedade num mundo urbano cada vez mais desafiador”.
“Vivemos tempos de transição digital nos diversos ecossistemas sociais e econômicos dos quais se constituem as nossas cidades. A vida urbana migra, inexoravelmente, para a convivências em plataformas figitais, físico-digitais”, avalia Marinho. É justamente nessa esfera que as tecnologias podem dar sua maior contribuição. Mas não como “produtora de distopias baseadas em infraestruturas futuristas”, ressalta.
Uma ferramenta fundamental nesse processo de resolução de problemas e de melhoria da vida urbana é perfeitamente factível e já está profundamente difundida: o smartphone. Marinho defende “uma utilização prosaica e efetiva da massiva distribuição de smartphones existente hoje, com a adoção de plataformas de serviços que empoderam os cidadãos e facilitam a provisão de serviços relevantes do setor público”. Ele cita como exemplo a plataforma Conecta Recife, lançada no início da pandemia de Covid-19 como serviço de orientação para a população sobre a doença, agendamento de consultas médicas remotas e agendamento de vacinas. Hoje, o produto foi estendido para outros serviços oferecidos pela Prefeitura do Cidade do Recife.
Ao falar sobre o Recife, Claudio Marinho considera que a capital está um passo na frente na construção de uma cidade do futuro mais inclusiva e sustentável em razão da existência do Porto Digital. “É um laboratório vivo de experiências com tecnologias humanizadoras da vida em sociedade urbana”.
Inovação e sustentabilidade ambiental também fazem parte da agenda urbanística
Alguns dos destaques da extensa agenda voltada para o assunto ocorreram o terceiro dia do evento (18), a exemplo do seminário Conexão Recife-Medellín. A cidade colombiana, que no início de 2022 firmou um acordo de cooperação com a capital pernambucana para a troca de experiências em áreas como industrias criativas e cultura cidadã, tem tido resultados exitosos em inovação no urbanismo nas últimas duas décadas.
Outra atividade que abordou o tópico sobre cidades do futuro no terceiro dia de evento foi o debate com o jornalista André Trigueiro. Especialista em questões ambientais, o repórter falou sobre soluções sustentáveis para o planejamento urbano. Um dos aspectos que ele enfatizou foi o atual quadro de emergência climática. “É o assunto do momento, e é [responsabilidade] de todos”, afirmou, lembrando da urgência nos esforços para a redução de emissão de gases do efeito estufa.
Hoje, uma parte expressiva das emissões de CO2 no mundo tem origem nos grandes centros urbanos, sendos os carros particulares grandes poluentes. Por exemplo: o Inventário de Emissões Atmosféricas do Transporte Rodoviário de Passageiros no Município de São Paulo (2017) aponta que esses veículos são responsáveis por 72,6% da emissão de gases do efeito estufa na cidade. No entanto, eles transportam apenas 30% da população.
“A mobilidade sustentável passa por um planejamento inteligente que contempla diferentes modais, complementares”, destacou Trigueiro, enfatizando a necessidade de estimulo ao uso bicicletas e outras opções ecologicamente corretas, com ciclovias integradas a outras modalidades de transporte público.