Há 30 anos, um grupo de jovens artistas retirava Pernambuco de um marasmo cultural. O manguebeat nasceu oficialmente com um manifesto publicado em 1992. Mas, antes disso, toda uma trajetória de criatividade, persistência e cooperação existiu para chegar até ele.
No primeiro dos anos 1990, um órgão das Nações Unidas classificou a cidade como a quarta pior do mundo em qualidade de vida. A cultura da cidade estava estagnada, a indústria cultural enfraquecida desde os anos 70 e os espaços eram cada vez menores.
Em Rio Doce, bairro de Olinda que cresceu pelo aterro de manguezais, vivia Francisco de Assis França. Ele morava na quinta etapa do conjunto habitacional construído por lá nos anos 60, numa rua que dava para um mangue. Os caranguejos entravam na sua casa quando a água subia.
A primeira banda de Chico foi a Orla Orbe, que experimentava hip hop e funk dos anos 70. O grupo participava de eventos ligados à black music e disputas de break dance. À direita o cartaz de um marcante evento com o Orla Orbe no Espaço Oásis, em Olinda.
E como fazer cultura naqueles tempos difíceis? A futura turma do mangue ocupava espaços em espécies de “guetos”. Foi na Misty, uma boate gay bem famosa da época, que Chico organizou uma festa de hip hop.
O Recife Antigo nesta época vivia uma fase de decadência e também recebia muitas festas da futura turma do mangue, com destaque para aquelas realizadas no Adilia’s Place, que era um prostíbulo. A festa “Sexta Sem Sexo” ficou conhecida por ser a primeira do mangue.
Chico conheceu alguns dos primeiros ‘mangueboys’ ouvindo um programa da Rádio Universitária da UFPE que tocava rock alternativo. Ele era comandado por nomes como H.D. Mabuse e Fred Montenegro – futuro Fred Zero Quatro. Esse programa depois foi para a Transamérica FM, onde Chico os conheceu pessoalmente.
Chico trabalhou por um tempo numa empresa de tecnologia: a Empresa Municipal de Informática, que fazia o processamento de dados da Prefeitura do Recife e hoje integra o Porto Digital. Lá ele conheceu Gilmar Bolla 8, que tinha uma banda chamada Lamento Negro.
Essa era uma banda formada por jovens da periferia de Olinda e influenciada pelo samba-reggae e pela nova música baiana, a exemplo de grupos Araketu e Olodum. Aos poucos, ele também iam se aprofundando em ritmos da cultura popular de Pernambuco, como afoxé, coco, maracatu.
Chico, que havia deixado a Orla Orbe para fundar a banda Loustal, com Lúcio Maia (guitarra) e Alexandre Dengue (baixo), passa a realizar ensaios com o Lamento Negro. As experimentações entre guitarra e percussões davam início ao que viria se chamar Chico Science e Nação Zumbi.
O nome definitivo da banda fazia menção ao “Afrika Bambaataa & the Zulu Nation”, pioneiro da música eletrônica e do hip hop; ao maracatu, que se dividia em nações; e ao lendário Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares.
Já o termo “mangue” surgiu na cabeça de Chico durante uma viagem num ônibus Rio Doce – Conde da Boa Vista, que ligava o seu bairro de Olinda ao Centro. Ele compartilhou a ideia com Jorge du Peixe: “O nome da parada é mangue”, disse.
Depois, repassou na mesa do bar Cantinho das Graças, um dos favoritos da turma – embora o maior point tenha sido a Soparia, no Pina. O mangue que Chico convivia ao lado de casa era uma metáfora perfeita para aquela rica diversidade de ritmos e tinha tudo a ver com o Recife.
Só algum tempo depois a ideia é que ele foi apresentado à obra do cientista Josué de Castro, que coincidentemente também usava mangue e caranguejos como símbolos em seu único romance – “Homens e Carangueijos”.
Em 1992, o manifesto “Caranguejos com Cérebro” é distribuído para a imprensa com todo o conceito daquela nova cena. A criação desse texto é o marco inicial do mangue, por isso os 30 anos estão sendo comemorados agora A ilustração do homem-caranguejo foi criada por Hélder Aragão, o DJ Dolores.
Dono de uma loja de discos, Paulo André Pires percebeu que havia algo acontecendo na cidade e decidiu organizar o primeiro Abril Pro Rock, em 1993. O Abril, assim como muitos eventos da época, ocorriam no Circo Maluco Beleza, uma versão local do Circo Voador, do Rio.
Em 1994, a Nação Zumbi lança o seu primeiro disco, que chamou a atenção da crítica nacional e internacional, sendo incluído numa das listas de melhores discos do ano do New York Times. Em 2022, “Da Lama ao Caos” foi considerado o melhor álbum da música brasileira nos últimos 30 anos por uma votação de especialistas no jornal O Globo. +
A curto prazo, o mangue tornou a cena recifense uma das mais efervescentes do país, dando interesse midiático e oportunidade em gravadoras para nomes como Banda Eddie, Mundo Livre S/A, Jorge Cabeleira, Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio e muito mais.
A longo prazo, aquele movimento fez com que Pernambuco olhasse com mais valor para a cultura popular, que estava esquecida. E deixou uma lição que atravessa gerações: o diferencial da mudança pode ser bem ao redor: “Se queres ser universal, pinta a sua aldeia”.
Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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