O Porto Digital é destaque na mídia internacional especializada em tecnologia, negócios e inovação. A conceituada revista norte-americana Wired publicou nesta sexta-feira (30) uma matéria – assinada pela jornalista Angélica Mari – sobre a história de sucesso, superação e evolução do nosso parque tecnológico.
As razões apontadas pela publicação para o ótimo momento que vive o Porto Digital já são familiares para quem conhece o ecossistema: mais de 350 empresas embarcadas e mais de 17.000 profissionais empregados, atuando num mercado em ampla ascensão.
O que deixa esse mesmo mercado animado é a perspectiva do que vem sendo construído nas áreas de qualificação profissional e desenvolvimento de soluções em inteligência artificial generativa.
Para o presidente do Conselho de Administração do Porto Digital, Silvio Meira, o mais difícil já foi feito lá atrás, quando uma ideia de parque tecnológico de ponta no Nordeste parecia impossível. “A gente agora envolve muito mais gente, muito mais recursos, muito mais competências e habilidades para chegar ainda mais longe. Alcançar esse reconhecimento deve ser algo bastante celebrado no Recife e em Pernambuco. Nenhum setor econômico do Estado alcançou esse impacto global”, comentou Silvio.
Abaixo, publicamos a íntegra do texto traduzido.
Porto Digital é o hub de tecnologia quixotesco que realmente funcionou
Criada em 2000 para deter a decadência urbana na cidade brasileira de Recife, a iniciativa trouxe milhares de empregos em tecnologia para a região.
POR ANGELICA MARI
NO FINAL dos anos 90, Recife, na costa nordeste do Brasil, estava em declínio. Seu pitoresco centro histórico, composto por edifícios coloniais do século XVII com influências holandesas, portuguesas e francesas, mergulhou na negligência, refletindo uma profunda crise econômica agravada pela desindustrialização. Muitos jovens estavam fugindo da cidade em busca de oportunidades nos centros comerciais de São Paulo e do Rio de Janeiro, ou indo para o exterior. Algo teve que mudar.
Em 2000, um grupo de empresários, funcionários públicos e acadêmicos teve a visão de regenerar o centro histórico do Recife construindo um novo distrito tecnológico. Com 33 milhões de reais ( U$ 6,8 milhões) levantados da privatização da empresa local de eletricidade, eles criaram o Porto Digital, organização sem fins lucrativos com a missão de transformar o Recife em um centro de tecnologia e indústrias criativas. O plano —, “uma maneira ousada de mostrar a São Paulo que havia vida inteligente no Nordeste”, de acordo com Claudio Marinho, um engenheiro urbano que foi um dos mentores por trás da estratégia do Porto Digital — era mais radical do que apenas um parque tecnológico.
Marinho incorporou conceitos vistos em cidades como Paris, como a capacidade de caminhada: “o que significa que as pessoas não devem andar por mais de 15 minutos para chegar aos principais locais do ecossistema, como escritórios, bares e espaços culturais para trabalhar e socializar”. O planejamento enfatiza “encontros casuais e afortunados e acaso”, diz ele. “Essas situações tornam o excesso de conhecimento muito mais provável e, é claro, os negócios são realizados”.
O mundo está cheio de ambiciosos projetos de centros de tecnologia que se propuseram a reviver e revigorar cidades que perderam seu objetivo. A receita geralmente é a mesma: algum apoio do governo simbólico, alguns incentivos fiscais e muito relacionamento. Muitos — provavelmente a maioria — falham. Mas quase um quarto de século após o lançamento, a Porto Digital transformou o Recife em um centro de boa-fé para os setores emergentes de tecnologia e economia criativa do Brasil, com mais de 350 residentes, de players globais a startups de ponta. A indústria emprega mais de 17.000 pessoas, muitas das quais emergiram da universidade local, a Universidade Federal de Pernambuco, que possui um dos cursos de ciência da computação mais bem classificados do Brasil. Agora, o centro está olhando para o futuro novamente, na esperança de capitalizar seus sucessos para liderar a linha para o Brasil em novas áreas de inovação,como inteligência artificial generativa.
“O Porto Digital nunca parou de crescer, mas queremos aumentar significativamente o número de pessoas que trabalham em tecnologia no Recife nos próximos anos. Também queremos que nossas empresas gerem a maior parte de sua receita fora do Nordeste e, de preferência fora do Brasil”, diz Silvio Meira, um dos pais fundadores e presidente do Conselho do parque tecnológico e professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco.
A ideia central por trás do Porto Digital é a colaboração tripla de reunir governo, academia e empresas para impulsionar a mudança social.
Uma das instituições fundadoras da iniciativa é o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife, conhecido como CESAR, que realiza pesquisas para algumas das maiores empresas do Brasil e possui sua própria instituição de ensino superior, com cursos focados em tecnologia, design e negócios. O centro também tem sido um terreno fértil para algumas das principais startups nascidas no Recife, tendo apoiado mais de 220 novas empresas nos últimos anos.
O CESAR foi fundado quatro anos antes da Porto Digital. Sua história está profundamente entrelaçada com o tecido cultural local, principalmente o movimento Manguebat, que combinava o tradicional maracatu com ritmos como rock, funk e hip hop. Criado na década de 1990 pelo falecido músico Chico Science e sua banda, Nação Zumbi, esse era mais do que apenas um novo gênero; foi um pedido de renascimento cultural e econômico.
A visão da ciência era “injetar energia no manguezal” que metaforicamente se referia à cidade então estagnada do Recife. O movimento se manifestou em vários pontos de encontro em toda a cidade, onde novas maneiras de fazer música, arte, cinema, moda e design foram desenvolvidas, misturando referências e tendências globais com o rico patrimônio cultural do Recife.
Em meio a essa efervescência cultural, um grupo de estudantes e professores do Departamento de Informática da Universidade Federal de Pernambuco, incluindo Meira, começou a traduzir os fundamentos de Manguebat para a criação de uma nova cena tecnológica e, assim, o CESAR nasceu. “Decidimos que a mudança de paradigma que estava ocorrendo culturalmente poderia ser aplicável à indústria de tecnologia e começamos a trabalhar para tornar o Recife um lugar onde as pessoas queriam desenvolver suas carreiras e ficar” diz Eduardo Peixoto, CEO do CESAR. Engenheiro elétrico, Peixoto trabalhou no exterior por anos — primeiro na Holanda, depois na Suíça, e voltou ao Brasil para ajudar a construir a organização que ele lidera agora.
O Porto Digital oferece uma série de vantagens para seus negócios residentes, que incluem uma redução do imposto sobre serviços de 5% para 2% para empresas baseadas no centro histórico, bem como isenções de imposto predial. Além disso, o parque tecnológico oferece serviços de consultoria, um programa focado na expansão dos negócios e outros benefícios intangíveis, como eventos de networking.
A combinação de suporte prático e o senso de colaboração no ecossistema tecnológico local ajudaram a atrair grandes empresas, incluindo a montadora Stellantis, a empresa de segurança cibernética Tempest —, adquirida pelo conglomerado aeroespacial Embraer em 2020 — e a Neurotech, uma empresa de IA vendida para a B3, a bolsa de valores brasileira, por cerca de 1,1 bilhão de reais (U$ 226 milhões) em 2022. A empresa de consultoria Accenture foi criada no Recife em 2010. Agora, emprega mais de 3.000 pessoas na cidade e é um dos principais empregadores do programa de aprendizado de tecnologia do Porto Digital. Com foco em estudantes da rede de escolas públicas, o programa Embarque Digital, visa levar até 2.000 estudantes como força de trabalho tecnológico local até 2024.
“Relações que podem ser percebidas como transacionais ou até competitivas em outros ecossistemas se tornam verdadeiras colaborações no Porto Digital”, diz Luis Fernando Silva, diretor administrativo da Accenture. “Chegar a pessoas em todas as esferas é mais simples, e as coisas acontecem mais rapidamente dessa maneira”.
A abordagem do Porto Digital, dizem seus apoiadores, ajudou as empresas brasileiras a chegar cedo para capitalizar as tendências emergentes da tecnologia, transformando a pesquisa acadêmica de ponta em negócios reais.
“Há uma diferença entre os clusters que são puramente focados em tecnologia e ciência e aqueles que podem traduzir aprendizados em insights acionáveis”, diz Meira, cuja empresa de transformação digital, TDS Company, foi desenvolvida dentro do Cesar. “No Porto Digital, há muita integração entre aqueles que pensam e pesquisam inovação e aqueles que transformam todo esse conhecimento em valor para clientes e usuários finais”.
Cristiano Lincoln Mattos, CEO e co-fundador da Tempest, que também saiu do CESAR, atribui a própria existência de sua empresa à capacidade do ecossistema de traduzir conhecimentos do mundo acadêmico em necessidades do mercado. “Nem poderíamos criar a empresa se não tivéssemos o apoio do CESAR no início, especialmente considerando que o mercado local de segurança cibernética era inexistente há 23 anos” diz Mattos, cuja empresa agora possui escritórios em todo o mundo e está se mudando para o setor de defesa, assim como para outros mercados, depois de ser comprada pela Embraer.
O CESAR quer fazer o mesmo pela IA. O instituto quer se tornar um centro internacional para treinar empresas em como se adaptar à IA generativa e ajudar seus funcionários a se tornarem nativos de IA generativa. “Estamos focados em testar novas maneiras de aumentar a produtividade combinando informações humanas e de máquinas para criar ou aprimorar design, conteúdo e código” diz Peixoto.
Considerando o modelo hiper-colaborativo do Porto Digital, os anos da Covid não foram fáceis. O impacto de não poder se encontrar pessoalmente foi agravado pela suspensão de eventos importantes organizados pela organização sem fins lucrativos, como o Rec’n’Play, um festival anual destinado a despertar interesse em carreiras tecnológicas entre a população. Ainda assim, o distrito registrou um aumento de 10% no número de trabalhadores nos últimos três anos, com a receita crescendo 29%. O governo anterior, sob o presidente de direita Jair Bolsonaro, também não era um grande apoiador do projeto.
“Os anos sob Bolsonaro foram realmente desafiadores para nós, pois as estruturas de ciência e tecnologia do governo foram completamente desmanteladas — tivemos que nos reinventar”, disse Pierre Lucena, CEO da Porto Digital. Desde 2016, a organização que administra o distrito de tecnologia não recebe recursos do governo federal e realiza projetos abertos de inovação e consultoria a outros estados para garantir sua independência financeira.
Com a pandemia por trás, o objetivo imediato do Porto Digital é ter 25.000 profissionais trabalhando em empresas com sede no distrito de tecnologia até 2025 e mais de 600 empresas lá. O parque tecnológico tem como objetivo treinar até 50.000 pessoas até 2050, concentrando-se em comunidades carentes por meio de iniciativas do ensino médio até a qualificação de profissionais em áreas de tecnologia, como disciplinas de IA.
O Governo do Estado, que apoiou a iniciativa desde o início, espera alavancar o sucesso do centro de tecnologia para construir uma base econômica que se estenda além da capital do Estado e entre o resto de Pernambuco. Pernambuco é o terceiro Estado brasileiro mais desigual, com 51% de seus cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
“Nosso desafio é replicar [ a estrutura do Porto Digital e iniciativas de treinamento ] em todo o interior, para desenvolver empreendedores no Estado que já têm foco em tecnologia, e apoiar aqueles que ainda não estão nesse espaço “, diz Raquel Lyra, governadora do Estado de Pernambuco.
Crescer o setor de tecnologia pode significar mais oportunidades econômicas e de emprego, mas também a chance de desenvolver serviços públicos digitais e soluções inovadoras para os desafios generalizados do Estado. “Somos um Estado pobre, com 2 milhões de pessoas sem comida e um número igual sem acesso à água”, diz Lyra. “Conhecemos nossos problemas e falhamos em áreas que poderiam ser tratadas com o uso de dados e tecnologia”.
Esses não são desafios diretos, mas Meira, que assistiu o Porto Digital crescer de uma ideia para seu destaque atual, está convencida de que há razões para ser otimista.
“Recife não espera que as coisas aconteçam; não estamos interessados em fazer coisas que já foram feitas antes”, diz Meira. “Isso funcionou para nós no passado e continuará a nos destacar no futuro”.
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