Nós moramos no Nordeste do Brasil. Não somos estranhos ao calor, muito pelo contrário: o clima quente o ano todo sempre foi um dos nossos maiores atrativos para turistas. Mas a coisa muda quando o País sofre com uma onda de calor sem paralelos, que alcançou seu ponto mais crítico no último final de semana. Aqui vamos precisar contrariar a cantora Marina Sena: esse verão não promete ser uma delícia!

Este fenômeno, que tem castigado com especial intensidade as regiões Sudeste e Centro-Oeste, não é um mero acaso meteorológico, mas sim um reflexo contundente das alterações climáticas que o planeta tem sofrido. Além de estar intrinsecamente ligado ao El Niño mais rigoroso deste ano, ele tem também uma conexão direta com a crise climática, exacerbada pela emissão contínua de gases de efeito estufa.

Agosto passado já havia cravado nos registros como o mês mais quente da história, conforme apontado pela Agência Americana Oceânica e Atmosférica (NOAA). Ainda existe uma probabilidade de 95% de que 2023 se posicione entre os dois anos mais quentes já documentados. Sarah Kapnick, cientista-chefe da NOAA, adverte que, enquanto as emissões de poluentes persistirem alimentando o aquecimento global, novos recordes térmicos serão estabelecidos nos anos vindouros.

A cidade de São Paulo registrou altas temperaturas nos últimos dias – Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

A boa notícia é que parece que está passando (por enquanto). O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) sinaliza que a força abrasadora deste calor começa a arrefecer a partir da tarde desta terça-feira (26). Contudo, metrópoles como Palmas (TO) e Cuiabá (MT) ainda estão sob o domínio de temperaturas abrasadoras, com termômetros que podem alcançar marcas de 40ºC e 43ºC, respectivamente. E cidades como Campo Grande (MS) e Goiânia (GO) não estão distantes deste cenário, com previsões que rondam os 39ºC.

Até Curitiba, que se gaba do seu frio, também não escapou da onda de calor, com os termômetros marcando 33,1°C às 15h, estabelecendo o recorde do ano para a cidade. Oito capitais brasileiras, incluindo Teresina (39,2°C), Palmas (38,9°C) e Goiânia (38,5°C), presenciaram temperaturas superiores a 37°C. No entanto, o ápice foi registrado em Cuiabá, com alarmantes 40,6°C, lançando um olhar preocupante sobre a intensificação da onda de calor.

Por isso, o  Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, emite um alerta contundente: elevou seu nível de alerta para “grande perigo”, colocando nove Estados brasileiros sob este manto de vigilância: Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Pará, Goiás, Mato Grosso do Sul e Tocantins. 

Este alerta, categorizado como “vermelho”, é acionado em situações de intensidade excepcional, onde os riscos à integridade física e à vida humana são iminentes.

Com pouca chuva e calor intenso, população de Brasília sofre com baixa umidade do ar – Crédito: José Cruz/Agência Brasil

AI QUE DELÍCIA O VERÃO (SÓ QUE NÃO!)

O Brasil está, na verdade, em sintonia com o restante do globo, que vem enfrentando desafios sem precedentes. O Super El Niño, fenômeno climático de grande influência nas temperaturas, ainda está em sua fase embrionária. A frequência e intensidade crescentes das ondas de calor são frequentemente atribuídas às mudanças climáticas, com grandes cidades agora experimentando uma média de seis ondas de calor por ano, contra apenas duas na década de 1960.

Além disso, o fenômeno El Niño contribui para temperaturas mais elevadas globalmente. É um padrão climático natural que já levou a temperaturas recordes em toda a América do Sul. E o impacto da onda de calor vai além do desconforto das altas temperaturas. Representa um risco significativo para a agricultura, particularmente para a produção de café do País. As árvores de café arábica são sensíveis a temperaturas acima de 33°C durante a fase reprodutiva. A chegada precoce de temperaturas quentes pode fazer com que as plantas de café não frutifiquem, resultando em uma drástica redução na produção do grão.

“Variações de temperaturas têm um impacto direto nos mais diversos setores, do agronegócio à indústria de alimentos, cosméticos e vestuário, e pode até levar a revisões nas políticas públicas de saúde”, afirma o meteorologista e Head da Climatempo, Willians Bini, em entrevista ao The BRIEF. “Um inverno mais quente, por exemplo, mexe com toda a cadeia de produção, desde a compra de matéria-prima e insumos, até a venda final, seja numa prateleira ou numa vitrine”, completou o expert.

Termômetro no centro do Rio de Janeiro em meio a forte onda de calor – Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A onda de calor em curso é um lembrete contundente da necessidade urgente de abordar as mudanças climáticas para evitar que tais eventos climáticos extremos se tornem a norma. Do outro lado do planeta, a Austrália confirmou que este foi o inverno mais quente desde o início dos registros há mais de um século. “Alguns desses recordes foram quebrados por uma grande margem, o que chamamos de extremos ‘recordes esmagadores'”, explicou Michael Grose, cientista sênior da CSIRO, a agência científica do governo australiano. 

A CRISE É GLOBAL

Até mesmo perto do Polo Sul, o aumento da temperatura do ar e da água resultou na menor extensão de gelo marinho já registrada ao redor da Antártica. Ainda em março do ano passado, a costa leste do continente testemunhou um aumento surpreendente nas temperaturas, atingindo 39°C acima do normal. Edward Blanchard-Wrigglesworth, autor do estudo sobre o evento, destacou a magnitude deste aumento de temperatura, afirmando que foi “o maior já medido em qualquer lugar do mundo”. 

Normalmente, as temperaturas em março na região são de -54°C. No entanto, em 18 de março de 2022, os termômetros registraram -10°C, uma temperatura mais alta do que as máximas registradas durante os meses de verão naquela região.

A pesquisa de Blanchard-Wrigglesworth investigou as causas dessa onda de calor sem precedentes e descobriu-se que, embora a mudança climática tenha desempenhado um papel, a principal causa foi a variabilidade natural da Antártica. Um fator crucial foi a mudança nos padrões de vento. Em vez de soprar de oeste para leste, os ventos desviaram, permitindo que uma massa de ar quente da Austrália se movesse rapidamente para a Antártica Oriental. Esses ventos também trouxeram umidade significativa, resultando em neve, chuva e derretimento na costa leste.

Fortes ondas de calor também podem provocar mais chuvas torrenciais – Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

Apesar disso, Blanchard-Wrigglesworth alerta sobre as implicações futuras de tais ondas de calor na Antártica, especialmente em um mundo mais quente. Se tais eventos se tornarem mais frequentes, podem desencadear impactos significativos no manto de gelo da região, com consequências potencialmente devastadoras.

Os invernos no hemisfério sul tendem a ser mais amenos do que no norte. Muitos dos fatores que intensificaram o calor na América do Norte, Europa e Ásia nos últimos meses estão fazendo o mesmo abaixo da Linha do Equador. Ciclos de temperatura oceânica estão em suas fases quentes, enquanto os gases de efeito estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis estão se acumulando na atmosfera, aquecendo o planeta e alterando seu clima. 

Assim, o inverno quente no hemisfério sul este ano estava alinhado com o que os cientistas esperavam – e mais, deve amplificar-se ao longo dos próximos meses à medida que as estações mudam. O Dipolo do Oceano Índico, outro ciclo oceânico, também está se movendo em direção à sua fase positiva, que tende a reduzir as nuvens e as chuvas na Austrália, enquanto na América do Sul, a estação mais quente também trará mais precipitação, provavelmente em chuvas torrenciais. 

Bebedouros públicos disponíveis para hidratação da população no Centro de São Paulo – Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

ME CHAME PELO SEU NOME

Ondas de calor estão se tornando tão cada vez mais frequentes – e fortes – que cientistas já consideram nomeá-las, como se faz com tempestades tropicais. A discussão ganhou destaque em julho na Europa, quando o nome “Cerberus”, dado por um serviço meteorológico italiano à onda de calor no continente, viralizou. Isso levantou questões sobre quem deveria nomear esses eventos, quais critérios usar e qual seria a estratégia por trás dessa nomeação.

Atualmente, quando uma tempestade atinge ventos de 63 km/h, recebe um nome de uma lista pré-determinada. O diretor da Organização Meteorológica Mundial (WMO), John Nairn, destaca que, enquanto tempestades têm uma escala de severidade reconhecida, as ondas de calor ainda não possuem tal classificação, embora haja um desejo de estabelecê-la.

A nomeação de tempestades faz parte de um sistema complexo de redução de riscos, que inclui previsões e orientações à população. A WMO argumenta que nomear ondas de calor sem um sistema semelhante pode desviar o foco de sistemas de alerta e respostas para proteger o público.

Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF

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