Uma vitrine da modernidade. Assim soava a Avenida Guararapes, localizada em Santo Antônio, coração do Centro do Recife, na época da sua inauguração, há quase 90 anos.

A via é um exemplo das intervenções que buscavam levar a arquitetura moderna para os principais centros urbanos brasileiros, marcados pela arquitetura colonial, nas primeiras décadas do século 20. Essa transformação, é claro, ocorreu em meio a diversas controvérsias e contradições da vida política e social da cidade.

Desde a década de 1980, pelo menos, a Guararapes tem vivenciado um esvaziamento, mas agora se destaca como um dos focos para o futuro do Centro da capital pernambucana. A regeneração urbana no Bairro do Recife, onde nasceu o Porto Digital, ainda requer esforços conjuntos do setor público e privado para ‘cruzar’ a Ponte Maurício de Nassau.

Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970. (Crédito: Alcir Lacerda)

Algumas iniciativas vêm sendo feitas, como o gabinete Recentro, da Prefeitura do Recife; a chegada de um campus do Instituto Federal de Pernambuco, ocupando os edifícios Trianon e Art-Palácio, que foram cinemas de rua no passado; e a própria expansão do parque tecnológico do Porto Digital para Santo Antônio, alcançando o lado direito da Guararapes.

Neste texto, exploraremos o contexto histórico da construção da via, seu legado arquitetônico, o auge econômico e social da região, além de um simbolismo do passado que ainda persiste para o futuro. Esses elementos destacam o potencial da Avenida para reposicionar Santo Antônio como um polo estratégico, capaz de atrair novos investimentos e impulsionar o desenvolvimento do centro urbano.

Um projeto de remodelação para Santo Antônio

Nota sobre remodelação do bairro de Santo Antônio no Diario de Pernambuco, na década de 1920

Entre o fim do século 19 e o começo do século 20, o bairro de Santo Antônio destacava-se como centro administrativo e comercial do Recife. Nos anos 1920, o bairro de ruas estreitas se tornou passagem obrigatória para grande parte dos deslocamentos, o que gerou um trânsito caótico.

Nessa mesma época, surgiu o Clube de Engenharia de Pernambuco, que enriqueceu as discussões sobre urbanismo na cidade. Além de engenheiros e arquitetos, reunia empresários, políticos e servidores públicos, levando Santo Antônio ao centro do debate.

O primeiro projeto de reforma do bairro foi feito pelo arquiteto Domingos Ferreira, que era Chefe da Seção Técnica da Prefeitura de Recife, em 1927. Influenciado por Paris, ele propôs a construção de quatro avenidas unidas por uma praça com um enorme obelisco.

Plano de Domingos Ferreira para Santo Antônio (Crédito: Revista da Cidade)

Em 1932, o arquiteto Nestor de Figueiredo apresentou o Plano de Remodelação e Extensão da Cidade do Recife, que propôs o encontro de duas avenidas em formato de Y na Praça da Independência, com aspecto imponente de prédios e praças nos arredores, também seguindo uma tradição francesa. No entanto, o projeto foi considerado inviável economicamente e um tanto distante das tradições da própria cidade.

Plano de Nestor de Figueiredo para o bairro de Santo Antônio Crédito Revista Arquitetura e Urbanismo

Em 1935, o prefeito contratou o arquiteto Attílio Corrêa Lima, que preparou um projeto mais modesto, com poucos alargamentos e menos alterações no desenho urbano. Esse projeto quase foi para frente, mas o arquiteto perdeu espaço por motivos políticos. Em 1937, começou o Estado Novo, fase mais dura da Era Vargas.

Plano de Attílio Corrêa Lima para Santo Antônio, 1936 (Crédito: Urbanismo e Viação)

Um marco arquitetônico do Estado Novo

A Era Vargas trouxe consigo a ideia de modernização dos centros urbanos, já que o Brasil passava por um processo de industrialização e uma crescente concentração da classe trabalhadora nas cidades. 

Agamenon Magalhães, governador escolhido por Vargas no Estado Novo, nomeou Novaes Filho como prefeito. Essas mudanças tiveram repercussões nas discussões do urbanismo e a longa discussão sobre a reforma de Santo Antônio chegaria ao seu fim.

Obras para abertura da Avenida Guararapes (Crédito: Revista Nordeste)

Novaes Filho exigiu uma finalização rápida da remodelação. Para isso, o antigo plano de Figueiredo (1932) foi resgatado, mas alterado. Só ficaram duas grandes vias e seus blocos, indo da Praça da Independência até a Ponte Duarte Coelho. A Avenida foi batizada de “10 de novembro”, para celebrar a data do golpe do Estado Novo, em 1937.

Essa foi uma construção extremamente rápida, já que no autoritarismo não era necessário consultar a sociedade civil. A nova avenida foi uma intervenção brutal no bairro, destruindo dezoito quarteirões, incluindo ruas estreitas, prédios antigos e monumentos históricos dos séculos 17 e 18, como o Hospital São João de Deus, a Igreja Paraíso e o Regimento de Artilharia, onde foi dado o primeiro grito da revolução de 1817.

Antigo Pátio da Igreja Paraíso, nos anos 1930, antes da Av. Guararapes (Crédito: Correio da Manhã)

Os novos lotes foram ocupados por edifícios altos. O empresariado local não demonstrou interesse em ocupá-los de início, então o prefeito Novaes Filho recorreu ao próprio Getúlio Vargas para explicar a ideia da Avenida ser um símbolo do Estado Novo no Recife.

“Ao Getúlio, a cidade de Recife deve ser muito. Como prefeito, eu demoli tudo no bairro de Santo Antonio, construi a ponte Duarte Coelho e a Avenida Guararapes (antes 10 de novembro). Construí a  Avenida Dantas Barreto do Teatro Santa Isabel à Praça do Carmo. E então, quando eu destruí tudo, um grande bombardeio, que quer construir? Quem tinha o dinheiro para? (…) Eu ia ser o prefeito louco que arrasou tudo e deixou pior, deixou as ruínas em vez das casas antigas”, escreveu Novaes Filho, anos depois.

Construção dos prédios da Av Guararapes (Crédito: Benício Dias Fundaj)

Assim, muitos lotes foram doados às administrações federais e estaduais. O governo Vargas levou para lá diversos escritórios da burocracia federal e serviços públicos, a exemplo dos Correios. Os poucos lotes restantes foram logo comprados, incluindo bancos e cinemas – como o Triannon e o Artpalácio.

Em 1948, já após o fim do Estado Novo, a Avenida foi rebatizada com o seu atual nome em homenagem à batalha que expulsou os holandeses de Pernambuco. Naquela década, o evento celebrava seu tricentenário.

Notícia sobre mudança do nome da Avenida 10 de Novembro para Avenida Guararapes

Ápice

A Avenida Guararapes se tornou símbolo da modernidade urbana, dando um padrão de verticalização ao Recife. Em imagens dos anos 1950, podemos ver os prédios da avenida em contraste com os sobrados ainda dominantes no Recife. Ela também é um exemplo do urbanismo francês no Brasil, pois Figueiredo inspirou-se em parâmetros da cidade moderna de Paris em sua concepção.

Entre as décadas de 1950 e 1970, a Avenida Guararapes viveu o seu ápice com escritórios de grandes empresas, vida cultural efervescente e marcantes letreiros em neon para publicidade. 

Vista aérea de Santo Antônio no começo da década de 1950 (Crédito: Fundaj)

A Avenida também era ponto de encontro de intelectuais da época, com destaque para o Bar Savoy, que reunia nomes como Gilberto Freyre, Carlos Pena Filho, Capiba, Osman Lins, Vicente Rego Monteiro, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, entre outros.

Lá estiveram  grandes personalidades, como Jorge Amado e Aldous Huxley, Roberto Burle Marx, Heitor Villa Lobo, Savoy Simone de Beauvoir e Jean-Paul  Satre.

O cinema Trianon, que ficava no prédio de mesmo nome, era o ponto de encontro das famílias e da juventude da cidade. Ele tinha lotação de 1.400 poltronas, com aparelho de ar condicionado de última geração que até então só existia em cinemas do Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires. O primeiro foi “E O Amor Voltou”.

Anúncio de inauguração do Trianon, ao lado de outros cinemas, em 18 de setembro de 1945

“A nova casa de espetáculos, segundo informações que nos foram transmitidas pelo representante nesta cidade Ugo Sorrentino, disporá das mais modernas instalações, podendo-se afirmar que em nada ficará a dever aos melhores cinemas do sul do país”, informou o Diario em 10 de setembro daquele ano.

A decadência da Avenida Guararapes começa no final dos anos 1970, com o deslocamento de muitas atividades típicas do Centro para outros bairros, como os da Zona Sul. O resgate da sua utilização é um grande desafio para o Recife. 

Algumas iniciativas nesse sentido existem. O Recentro, da Prefeitura do Recife, tem dado incentivo para a reabilitação de imóveis da região e também tem realizado o Viva Guararapes, com atividades culturais no espaço.

Avenida Guararapes na atualidade

Já existiam iniciativas bem-sucedidas de retrofits para moradia, que é o caso do Edifício Sertã, que foi restaurado com a readaptação de dezenas de salas em 16 apartamentos, quase todos ocupados.

Outra iniciativa busca reabrir o Bar Savoy. O Instituto Ser Educacional, do Grupo Ser Educacional, e Instituto Maximiano Campos buscam uma empresa para a parceria de retomada. Um concurso arquitetônico foi realizado, sendo a vencedora do prêmio a arquiteta Manoela Pires Soares.

Agora, a Guararapes encontra-se no centro de novos debates e intervenções que buscam reposicionar o bairro de Santo Antônio como um polo de desenvolvimento urbano, integrando cultura, educação e inovação. É um resgate crucial para a memória da cidade, criando novas oportunidades econômicas e sociais no Centro do Recife.

  • O texto usou informações históricas dos artigos “A Transformação do Bairro de Santo Antônio no Recife”, de Fernando Moreira, e “Avenida Guararapes: Paisagem Cultural”, de Ariadne Paulo Silva.
  • O artigo reflete a opinião do autor e não necessariamente a do Porto Digital.

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