A transformação urbana do Bairro do Recife no começo do século 20 também veio acompanhada com novos modos de experimentação do lazer. Juntos aos edifícios ecléticos, surgiram diversos hotéis, cafés, cassinos e clubes que, assim como na arquitetura, também costumavam ter inspirações francesas.
O edifício abordado neste texto da série “Memória no Concreto: História de prédios do Bairro do Recife”, publicado pelo Jornal Digital, é um símbolo dessa tradição da boemia na região.
O Chantecler é um imponente edifício de arquitetura eclética localizado entre a Avenida Marquês de Olinda, as ruas Madre de Deus, Vigário Tenório e o Cais da Alfândega – com uma bela vista para o Rio Capibaribe.
Trata-se de um conjunto de seis imóveis que ocupam um mesmo volume. Esses imóveis passaram a ser ocupados a partir dos anos 1930 com as mais diversidades finalidades: agências de bancos (como o antigo Banco Nacional), escritórios de profissionais liberais, como médicos, de empresas, sindicatos e mais.
O empreendimento com este nome, vindo do francês “chant clair”, que significa “canto claro”, só chegou por lá na década de 1970. Era uma boate localizada no primeiro andar, com entrada pela Rua Madre de Deus. Essa famosa boate ficou eternizada no imaginário recifense, recebendo visitas até de Nelson Gonçalves.
No térreo, também existiu o icônico bar Gambrinus, que foi o mais antigo do bairro. Já no segundo andar, existiam diversas pensões.
Origem do ‘Chantecler’
Contudo, a boate Chantecler percorreu toda uma trajetória no Bairro do Recife até chegar à Marquês de Olinda. Registros na imprensa dão conta que ele surgiu na denominação de “cassino” em 1939, na Rua do Bom Jesus, número 240.
Uma nota publicada no “Diario de Pernambuco” em 20 de junho daquele ano informa que a principal atração da inauguração, a banda de jazz Os Almirantes Jones, havia chegado na cidade.
Hotéis, cafés, cassinos e clubes já vinham florescendo na ilha, mas um novo fator estimulou ainda mais esses negócios nas décadas de 1930 e 1940: a circulação do dólar.
O Porto do Recife passou a ser base de navios estadunidenses durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, os japoneses bloquearam a rota do Pacífico, obrigando os navios a pararem na capital pernambucana antes de seguirem para a África.
Treze anos depois, em 1952, o Chantecler volta aparecer na imprensa sendo denominado como “boite”. Em decadência, é vendido por CR$ 78 mil e muda-se para a Rua Mariz e Barros, número 107.
Já nesta época, o espaço sai das páginas sociais para figurar nas páginas policiais, com notas sobre brigas ocorridas entre prostitutas ou sobre roubos sofridos por clientes dentro ou na calçada. O espaço, agora, integrava no que era chamado de “baixo meretrício”.
Chegada na Marquês de Olinda
Em 1968, no regime militar, o funcionamento do Chantecler foi impactado por uma uma portaria que ordenou o fechamento de diversas estabelecimentos ligados à prostituição no Bairro do Recife. Um texto intitulado “De Afrodite a Orfeu”, publicado no Diario, em 1973, explica como ocorreu o seu ressurgimento.
“A sólida prostituição da zona portuária viveu dias (ou melhor, noites) amargos e acabou disseminada por ruas e becos. Mas, como tudo passa e sobre a terra a vida continua, o Chantecler reabriu em grande estilo, na Avenida Marquês de Olinda, debruçando-se sobre os encantos do Capibaribe. Reapareceu camuflado de dancing, mas acabou rasgando a máscara e proclamando a validade do sacrifício remunerado da deusa Afrodite sobre o altar de Vênus.”
Na década de 1970, o prédio tornou-se palco de um marcante e “subversivo” evento de artes visuais no Recife: a exposição Coletiva Chantecler, organizada pelo artista visual Paulo Bruscky e realizada em 3 de outubro de 1973.
A mostra reuniu artistas plásticos de renome como Corbiniano Lins, Wellington Virgolino, Montez Magno e Cavani Rosas. “Aquela casa noturna nunca teve, em toda a sua existência, um público tão grande e tão sofisticado: hippies, jovens intelectuais, artistas, estudantes, etc”, registrou o jornalista Valdi Coutinho para o “Diario de Pernambuco”, em 14 de outubro de 1973.
“Eu tenho cerca de 30 ou mais recortes de jornais do Brasil todo sobre esse evento, inclusive de cidades como Florianópolis. Eu fui preso, inclusive, como consequência desse evento”, diz Paulo Bruscky, em entrevista ao Jornal Digital.
“O dono do Chantecler também foi preso, mas logo foi solto porque disse que não tinha nada a ver, que eu apenas pedi o espaço. Eu arquei com tudo. Passei 10 dias incomunicável, porque era o AI-5. Os militares argumentaram que era uma exposição ‘submersiva’, pois eu estava subvertendo a sociedade ao levar provocações para o baixo meretrício”.
É interessante observar que essa atitude de ocupar um “cabaré” com movimentações artísticas continuou na década seguinte com os jovens que viriam a fundar o movimento manguebeat, que realizavam festas no Francis Drinks, na Avenida Rio Branco.
Bar Gambrinus
O prédio Chantecler também abrigou um bar que por muito tempo foi o mais antigo do Bairro do Recife: o Gambrinus, cujo nome homenageia um frade germânico que teria desenvolvido estudos sobre a técnica de produção de cerveja.
Foi fundado pelo alemão Hermet Fritz, em agosto de 1930 na Rua Álvares Cabral, chegando a funcionar como bar-restaurante na Segunda Guerra, quando teve o seu tempo áureo. Foi visitado por nomes de destaque, como Ascenso Ferreira, Antônio Maria, Pelópidas Silveira e Gilberto Osório.
O Gambrinus mudou-se para o prédio eclético da Avenida Marquês de Olinda em 1962, sob administração de Fernando Pereira. “Quem explorava o Chanteclair eram dois portugueses, os irmãos Amorim. Eles ficaram ricos cobrando ingressos para entrar no Chanteclair. E o Gambrinus funcionava embaixo, como os outros estabelecimentos”, relembrou Pereira, em entrevista realizada em 2002.
Decadência e restauração
Se o fim da guerra foi um duro golpe para estabelecimentos como o Chantecler, as mudanças das atividades portuárias para o Porto de Suape, no Litoral Sul de Pernambuco, intensificaram a situação de degradação. O estabelecimento fechou as portas no início da década de 1980. Já o Gambrinus resistiu até o ano de 2000, quando o prédio foi interditado.
A Prefeitura do Recife passou a planejar algumas ações para revitalizar a região na gestão de Jarbas Vasconcelos (1986-1988), que chegou a criar o Escritório de Reabilitação do Bairro do Recife. Em reportagens da época sobre o tema, sempre parecia existir alguma expectativa sobre o Chantecler, que foi tombado em 1998 pelo Iphan.
Apesar disso, o Recife assistiu a duas décadas de sua degradação até uma reforma concluída em 2012. Os trabalhos de restauração das fachadas, com erudita profusão de formas, executadas em estucaria e coberturas com estrutura metálica e telhas francesas, envolveram 75 profissionais, entre arquitetos, mestres artífices de estucaria e marcenaria, pedreiros, serralheiros, auxiliares e encarregados. O projeto foi liderado pelo arquiteto Jorge Passos.
O prédio é uma propriedade da Santa Casa de Misericórdia, mas é cedido à empresa gestora do Paço Alfândega. Ao longo dos anos, já foram apontadas possibilidades da criação de cafés, livrarias e até salas de cinema no espaço, mas nunca concretizados. Em 2022, foi palco para a realização da CasaCor de Pernambuco, evento de tendências no ramo da arquitetura e do design.
Hoje, as paredes do Chantecler continuam a guardar as memórias de uma época em que a boemia, a arte e a política se cruzavam. Carregam em si uma história viva, esperando para ser reimaginada.
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