Pelo papel estratégico que desempenhou como um dos principais portos do Brasil colonial, o Recife foi desenhado e descrito em diversas cartografias desde os primeiros séculos da colonização. Um desses registros permaneceu oculto até 2023, quando foi adquirido pelo Instituto Flávia Abubakir, sediado na Bahia.

Sem assinatura, o desenho – encontrado na França – retrata a antiga vila do Arrecife, hoje Bairro do Recife, e a chamada “cidade de Santo Antônio”, correspondente ao atual bairro homônimo, cercada por 16 embarcações de guerra identificadas como “galeões”.

Demonstração da Cidade de Santo Antônio de Pernambuco e vila do Arrecife no Brasil, por Albernaz II (Crédito: Acervo da Coleção Flávia e Frank Abubakir, Instituto Flávia Abubakir. Salvador, Bahia)

Ao adquirir a peça, os diretores do Instituto, Flávia e Frank Abubakir, convocaram os historiadores Bruno Ferreira Miranda e Pablo Iglesias Magalhães para investigar a autoria. A dupla percorreu arquivos históricos na Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra e Portugal, desenvolvendo um extenso trabalho comparativo e analítico.

O resultado da pesquisa apontou para um nome de peso na cartografia luso-brasileira: João Teixeira Albernaz II (s/d – c. 1699), membro de uma família de cartógrafos que atuou com destaque no século XVII. Ele é também autor de um renomado atlas do Brasil, datado de 1666, preservado na Biblioteca Nacional.

Cartografia como crônica da guerra

O desenho representa, com notável detalhamento, o cerco montado pelas armadas luso-brasileiras para retomar o controle do Recife durante a ocupação dos holandeses. Acredita-se que o desenho tenha sido realizado logo após a expulsão desses, em 1654.

Galeões bloqueiam acesso ao Porto do Recife em desenho de Albernaz II (Crédito: Acervo da Coleção Flávia e Frank Abubakir, Instituto Flávia Abubakir. Salvador, Bahia, Brasil)

É possível observar uma fração da Armada da Companhia de Comércio de Portugal, sob o comando de Pedro Jacques de Magalhães (1620-1688) e Francisco de Brito Freire (c. 1625-1692), enviada ao Brasil em outubro de 1653. Dezesseis galeões foram desenhados em formação semicircular, bloqueando estrategicamente o acesso ao porto.

O bairro de Santo Antônio, por sua vez, surge com a configuração de “Maurits Stadt” (Cidade Maurícia), urbanização erguida pelos holandeses no território continental, na então chamada Ilha de Antônio Vaz – hoje correspondendo aos bairros de Santo Antônio e São José.

É possível identificar importantes fortificações do período, como o Forte de Emília (ou Amália), erguido ao sul da cidade e vizinho ao atual Forte das Cinco Pontas, além do Forte do Brum, ainda em pé como museu militar.

Também são visíveis o Palácio de Nassau, residência de Maurício de Nassau; a ponte que conectava Santo Antônio ao Recife, com um arco; e a Igreja do Corpo Santo, por muito tempo considerada a mais antiga da cidade.

Da esquerda para a direita, possível representação do Palácio de Nassau, com jardim; ponte com arco; Forte do Brum; e Igreja do Corpo Santo (Crédito: Crédito: Acervo da Coleção Flávia e Frank Abubakir, Instituto Flávia Abubakir. Salvador, Bahia, Brasil)

Na área portuária, destaca-se o prédio da administração holandesa, situado próximo à Igreja do Corpo Santo. A porção mais danificada do documento abrange justamente a Ilha do Recife, embora os danos periféricos não comprometam sua leitura geral.

Outro aspecto notável são as estruturas montadas para o cerco terrestre: acampamentos, baterias provisórias de madeira e trincheiras, atribuídas às tropas sob o comando de Francisco Barreto de Menezes (1616–1688).

Estruturas montadas para o cerco terrestre (Crédito: Acervo da Coleção Flávia e Frank Abubakir, Instituto Flávia Abubakir. Salvador, Bahia, Brasil)

Incertezas e evidências

Apesar do valor histórico do achado, o mapa apresenta algumas imprecisões. Além das limitações técnicas do período, não há comprovação de que Albernaz II tenha visitado o Recife para realizar o desenho. Era prática comum que os mapas fossem elaborados a partir de relatos de terceiros.

“A forma como ele representa a Ilha do Recife não condiz com sua geografia de istmo – ela aparece alargada. Há ainda erros de localização, como o posicionamento incorreto do Palácio de Nassau, que estava ao sul, e não ao norte”, observa Bruno.

Um erro cartográfico recorrente é a representação de um forte triangular no lugar onde se localiza o Forte das Cinco Pontas – equívoco herdado do avô do cartógrafo e perpetuado por Albernaz II.

Identificação

Atlas do Brasil por João Teixeira Albernaz II, de 1666

Foi justamente a repetição de certos padrões – como esse erro de forma e o estilo caligráfico – que permitiu confirmar a autoria. A compatibilidade da letra com outras obras conhecidas do cartógrafo nas décadas de 1660 e 1670 foi decisiva, assim como a maneira específica com que ele retratava acidentes geográficos naturais e artificiais.

João Teixeira Albernaz II pertencia a uma das mais importantes famílias de cartógrafos da época moderna. Desde o século 16, os Albernaz produziram extensos registros do território brasileiro, da costa atlântica africana e de diversas regiões do Oriente.

Seu avô, João Teixeira Albernaz I (c. 1575 – c. 1652), foi responsável por cerca de 300 mapas, dos quais 158 dedicados ao Brasil – vários deles sobre o Recife.

“As famílias de cartógrafos costumavam solicitar licenças régias para levantar mapas, que eram considerados documentos estratégicos pelas potências coloniais”, explica Bruno.

“Esse desenho, encontrado na França, provavelmente foi retirado do Brasil ainda no século 17, numa época em que reinos rivais buscavam informações secretas sobre as possessões alheias. Albernaz II teve muitas obras desviadas com esse fim.”

O ineditismo do achado

Detalhes do desenho do Recife por Albernaz II (Crédito: Acervo da Coleção Flávia e Frank Abubakir, Instituto Flávia Abubakir. Salvador, Bahia, Brasil)

Segundo os pesquisadores, este é o único registro visual conhecido da Armada da Companhia de Comércio de Portugal, que teve papel central na retomada do Recife.

A descoberta surpreendeu até estudiosos portugueses, uma vez que o mapa não integra a Portugaliae Monumenta Cartographica (1960), o maior levantamento cartográfico já realizado em Portugal.

“É o único testemunho visual conhecido da vitória luso-brasileira. Pode ser também a obra mais antiga de Albernaz II que se tem notícia, trazendo detalhes inéditos do Recife daquele tempo. Os registros holandeses vão até 1648; este é de 1654”, comenta Bruno.

Os historiadores citam que há outros mapas de Albernaz II preservados no Brasil, como no Itamaraty. Há também registros em um atlas guardado em Nova York (EUA), mas aos quais ainda não tiveram acesso.
“É provável que outros mapas ainda estejam escondidos em arquivos, museus ou até em coleções privadas, à espera de serem redescobertos. Esse achado abre caminho para outras revelações. Imagine quantas famílias guardam documentos históricos sem conhecer seu valor. Esse desenho é um convite à curiosidade e à investigação”, concluem.

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