O presidente da Câmara Municipal de Aveiro, José Ribau Esteves, em encontro com o prefeito do Recife, João Campos, durante do REC ‘n’ Play 2022

A pandemia de covid-19, que entre 2020 e 2021 obrigou muitas empresas a mandar seus funcionários para casa, ajudou a impulsionar uma nova categoria de trabalhador: o nômade digital, aquela pessoa que consegue desempenhar suas funções, onde quer que esteja fisicamente. Com isso, o critério de moradia para muita gente mudou, passando da proximidade com o escritório para a qualidade de vida.

Essa mudança de paradigma teve um impacto particular na relação entre Brasil e Portugal. Com acesso ao mercado da União Europeia, posição 38 no ranking do IDH (contra a 87ª do Brasil) e uma população idosa crescente (com baixa taxa de natalidade), nossos “descobridores” foram redescobertos pelos nossos nômades digitais – uma população jovem e com mão de obra altamente especializada.

Não à toa, Portugal recentemente alterou sua “Lei dos Estrangeiros”, de 2007, para incluir trabalhadores remotos e pessoas que esperam obter um emprego no país (medida que beneficia especialmente cidadãos dos países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Mas mesmo antes da decisão, o número de brasileiros que migraram para Portugal bateu recorde em 2022: 252 mil, de acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sem contar os que têm dupla cidadania e os irregulares.

Então, quando o Porto Digital, um dos principais polos de tecnologia do Brasil, anunciou sua intenção de investir em um hub de inovação no Velho Continente, Portugal já seria uma decisão segura e natural. A “surpresa” em si veio com a escolha da cidade: Aveiro, um município de pouco mais de 80 mil habitantes, 70 km ao sul do Porto. Mas Recife e Aveiro têm mais em comum do que você pode imaginar inicialmente.

“Estive em Portugal em abril, escolhendo uma cidade. Estive ainda em Fundão, Matosinhos e Porto. Claro que Porto é a favorita dos brasileiros, mas Aveiro tem suas vantagens. No Porto seríamos ‘só mais um’, enquanto em Aveiro temos a oportunidade de levar uma mudança de verdade”, conta o presidente do Porto Digital, Pierre Lucena.

Para começar, a “Veneza portuguesa” (sério, eles chamam assim mesmo. Inclusive, tem mais cara de Veneza do que nossa Veneza brasileira) reúne algumas das mesmas condições que influenciaram na própria criação do Porto Digital, na virada do milênio, no Recife. Entre elas, uma das melhores universidades públicas do país, um histórico de desenvolvimento tecnológico de décadas e um centro histórico preservado pronto para dar um upgrade. “A cidade de Aveiro parece com o Bairro do Recife, como a gente gostaria que ele fosse do ponto de vista da urbanização”, completa Lucena.

Embora tenha sido formalizado em 2003, o Polo Tecnológico de Aveiro data do início dos anos 1990, sendo um dos mais importantes de Portugal. O foco está na área de operações ligadas às telecomunicações, no qual algumas das empresas da região trabalham desde a década de 1950. Com essa vocação, a Universidade de Aveiro foi aberta em 1974, com o primeiro curso de Eletrônica e de Telecomunicações e seus 46 alunos.

É dentro da academia que nasce, por exemplo, o Serviço de Apontadores Portugueses, o portal e buscador que vários internautas brasileiros (e lusófonos de uma forma geral) conhecem muito melhor pela sua sigla: SAPO, líder no país e acessado por mais de um milhão de portugueses diariamente.

Lá também foi criado, em 1999, a PT Inovação, o braço de desenvolvimento de novas tecnologias da Portugal Telecom, operador único nacional de telecomunicações que em 2015 foi comprado pela multinacional Altice Group. No ano seguinte, a PT Inovação foi rebatizada como Altice Labs e desde então lidera a agenda de inovação de todas as operações do grupo.

Atualmente, a Universidade de Aveiro conta com mais de 15 mil estudantes e mil docentes em 16 departamentos e 4 escolas politécnicas, oferecendo 45 cursos de graduação, 77 mestrados, 11 mestrados integrados e 51 doutorados.

Aveiro ainda é sede do TICE.PT (Polo das Tecnologias de Informação, Comunicação e Eletrônica), criado em 2008 e que mobiliza players de toda a cadeia de valor do setor – desde universidades e institutos até empresas e associações – para alavancar estratégias de rede e ampliar a capacidade de exportação e criação de valor nos produtos nacionais. O projeto foi recentemente integrado à iniciativa Gaia-X, da União Europeia, que trabalha no desenvolvimento da próxima geração de infraestrutura de dados digitais abertos, transparentes, seguros e compartilhados.

Não por acaso, Aveiro foi a primeira cidade de Portugal a receber o sinal 5G.

“Ok, entendi, Aveiro é bacana. Mas o que o Porto Digital ganha indo para lá?”, você me pergunta. Bem, ao se internacionalizar, o parque tecnológico pernambucano traz mais competitividade às suas empresas embarcadas em um mercado cada vez mais globalizado e competitivo. “Nós acreditamos que este hub poderá chegar a até 200 vagas para profissionais, entre brasileiros e portugueses. É um projeto para que essas pessoas possam continuar nas suas empresas embarcadas no Porto Digital, mesmo que estejam fora do Brasil, contando com uma boa infraestrutura de trabalho em Aveiro”, explica Pierre Lucena.

Com um pé em Portugal, o Porto Digital também terá acesso a um recurso que tem se mostrado cada vez mais raro no Brasil: fundos de inovação como os concedidos pela União Europeia e outras instituições que atuam na região. O principal deles, o Horizon, contou com um orçamento de quase € 80 bilhões entre 2014 e 2020. Este ano, o bloco apresentou plano que irá liberar, até 2030, US$ 48 bilhões só para a indústria de semicondutores.

“Portugal está numa posição única de servir como plataforma na Europa para dar aos países que falam português acesso a esses recursos – e que vai muito além deles também. Há uma oportunidade de trabalho objetiva, já que vivemos uma crise econômica (como quase todos os países), mas que o desemprego não é um problema”, completa o prefeito português.

O Porto Digital e a Câmara Municipal de Aveiro (o equivalente deles à prefeitura) vêm costurando o acordo que possibilitará a instalação do hub pernambucano há meses. Teve até uma troca de participações em eventos: em outubro, foi realizada a Aveiro Tech Week, com participação do parque tecnológico e da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil). Em novembro, o prefeito de Aveiro, José Ribau Esteves, esteve no nosso “carnaval do conhecimento”, o REC ‘n Play.

Segundo Lucena, “há uma demanda represada na Europa por produtos de inovação, então temos essa possibilidade para nossas empresas. E Portugal é o caminho mais fácil para nós, dentro de um projeto que é de longo prazo. Essa é a nossa primeira atividade organizada nesse sentido”.

O início do projeto deve se dar ainda no primeiro semestre de 2023. A Câmara de Aveiro se comprometeu a apoiar o projeto fornecendo “soft landing”: fornecendo espaço físico para o futuro o hub tecnológico, além de facilitar a emissão do visto, matrículas nas escolas e acesso ao serviço de saúde para os migrantes. “No mundo dos parques de tecnologia, o Porto Digital tem um lugar muito especial. E, portanto, quando surgiu a oportunidade de colocar na vida de Aveiro um novo ator internacional foi uma aposta muito bem acolhida. É mais um parceiro para nossa universidade e nosso centro de tecnologia, e por essa via podemos transpor essa vitalidade e esta competência que o Porto Digital tem, além de acrescentar valor a esse ecossistema”, afirma Ribau.

O número que a gente falou lá em cima, de 252 mil imigrantes do Brasil para Portugal, mostra como a antiga metrópole é o “sonho de consumo” de muitos trabalhadores daqui, e pode resolver o antigo problema de evasão de mão de obra que o setor de tecnologia no País sofre. “Queremos aproveitar essa oportunidade”, explica o presidente do Porto Digital, “conseguir contratos melhores que nos permita pagar melhores salários aqui. Ou até permitir que uma empresa local possa atrair um talento que mora em outro estado e não topa morar no Recife – mas quer morar em Portugal”.

Essa “evasão de cérebros” não é uma exclusividade nossa e o Aveiro também espera resolvê-lo com a parceria do Porto Digital. “Temos nossos ‘nômades digitais’ que moram em Portugal e trabalham para empresas na Alemanha, Coreia do Sul e nos EUA, por exemplo. São países que pagam salários muito mais altos, mas que pelo elevado nível de qualidade de vida em Aveiro, os trabalhadores preferem ficar aqui. Então esperamos que com essa parceria nós possamos criar uma ponte com um país de grande crescimento como o Brasil”, conta Ribau.