Em uma das mais famosas passagens de O guia do mochileiro das galáxias, o autor britânico Douglas Adams (1952-2001) descreve o chamado “gerador de improbabilidade infinita”, uma invenção que permite atravessar grandes distâncias interestelares num tempo ínfimo, de maneira aleatória. Na obra, o mecanismo possibilita aos protagonistas viajar aos lugares mais improváveis e distantes do universo. Caso existisse de verdade, esse invento poderia muito bem proporcionar um improvável encontro do escritor inglês com o paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), como fez o cientista Silvio Meira ao abordar esses dois nomes da literatura para falar sobre transformações digitais no segundo dia do festival REC ‘n’ Play, na quinta-feira (18).
Sem dúvida um dos títulos mais inusitados presentes na programação do evento, a palestra “O fim do mundo, segundo Douglas Adams, e como evitá-lo, segundo Ariano Suassuna” trouxe ideias desses aparentemente tão distintos escritores para uma reflexão a respeito do mundo figital. Para quem ainda não está familiarizado com este termo, a própria composição da palavra já uma boa pista, afinal vem da fusão das expressões “físico” e “digital”. O figital é, justamente, o conceito utilizado para falar das experiências que integram os mundos on-line e off-line. Com experiências digitais cada vez mais inseridas no cotidiano, as plataformas e negócios precisam se adequar à essa nova realidade que torna muito mais estreitos os relacionamentos e interações físicas, digitais e sociais.
E o que Douglas Adams e Ariano Suassuna têm a ver com o figital?
Uma outra célebre passagem de O guia do mochileiro das galáxias uma civilização constrói um robô capaz de responder a qualquer coisa. A máquina é questionada a respeito do sentido da vida e leva milhares de anos para realizar os cálculos necessários para obter a resposta que, no fim das contas, não dizia muita coisa: 42. Silvio Meira utilizou a anedota para falar sobre como, eventualmente, alguns negócios utilizam, de maneira equivocada, dados em busca de soluções para determinadas questões.
“O ciclo de vida de informação nos negócios é fazer pergunta aos dados, mas sobre qual realidade?”, indagou o presidente do Conselho do Porto Digital e cientista-chefe da TDS Company. “É claro que a resposta 42, e essa resposta é tão certa quanto qualquer outro número ou qualquer outra sequência de caracteres que você encontrar.”, brincou.
Sobre essa questão, Silvio Meira comenta, na antologia Fundações para futuros figitais (disponível para download gratuito em https://bit.ly/futurosfigitais) que “um dos maiores problemas a tratar nas relações entre nosso negócio e as pessoas externas a ele é como usar dados e algoritmos para combinar produtos com serviços e experiências”. Ele acrescenta: “Já seria complicado o suficiente se não houvesse experiência na equação. Mas há. É por isso que o [re]desenho do negócio para futuros figitais exige experiências fluidas, figitais. Na avaliação de Meira, há uma realidade em constante mudança, que exige movimentos igualmente constantes. Para ele, negócios sustentáveis em ecossistemas digitais estão em permanente transformação, em adaptação.
Outro aspecto a ser levado em consideração, além dessa capacidade adaptativa, é manter uma a mente aberta para ideias mesmo quando elas não parecem realizáveis a princípio. “Se a gente for seguir só a razão, fica aquietado, acomodado o tempo todo”, diz Meira. O cientista citou o exemplo da criação do Google, no final dos anos 1990. Ao buscar financiamento para o site de buscas, seus criadores prometiam aos possíveis investidores para o projeto que o serviço poderia ser monetizado, embora ainda não tivessem qualquer ideia de como fazer isso. “Era uma mentira realizável”, sintetiza Meira.
“Um plano, um projeto futuro, é uma mentira realizável. Mentirosos são parecidos com escritores, que, inconformados com a realidade, inventam outras realidades, possíveis, como João Grilo e Chicó”, reflete o cientista. Ao citar os famosos personagens de O auto da compadecida, de Ariano Suassuna, lembrou que “esse mundo em transformação foi criado por mentiras realizáveis, no limite da credibilidade”. Conterrâneo de Suassuna, Silvio Meira citou também um aforismo do escritor paraibano como um exemplo de equilíbrio entre o factível e o improvável: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.
Para complementar, Silvio Meira também considera que os negócios digitais devem ser guiados por uma lógica mais voltada para oferta de valor. “Esse é, talvez, o novo tom dos negócios transformados figitalmente hoje. Os negócios figitais precisam passar por uma transformação de estratégia”, pondera. “A criação de valor leva a uma distribuição maior de valor do que a captação de valor em si. Transformação estratégica é a gente descobrir criativamente qual conhecimento a gente não tem e como a gente vai entender para atender ao mundo ao nosso redor”.