O termo economia digital foi mencionado pela primeira vez no Japão, nos anos 1990 e refere-se a uma economia baseada em tecnologias de computação digital [1]. De forma simples, a economia digital engloba todos os processos econômicos que utilizam recursos da tecnologia e do ambiente cibernético nos produtos e serviços das empresas.

Os jovens de hoje nunca chegaram a conhecer a vida analógica (pré era digital). Muitos dos que viveram isso não lembram mais, ou não querem lembrar. Mas, não faz muito tempo que o digital virou algo essencial nas nossas vidas. Até a década de 1990 (pode parecer muito longe, mas não é) o mundo era muito diferente. Basta pensar em duas coisas simples que mudaram radicalmente as nossas vidas: celulares e e-mails.

Celulares chegaram ao Brasil em meados dos anos 1990. Antes disso o que existia eram os telefones fixos. Nem todo mundo tinha um em casa. A instalação levava tempo, às vezes anos, depois de comprado. Geralmente se tinha um único ponto na casa (um único telefone para todos usarem). O serviço era provido por estatais e era de péssima qualidade. Quando alguém estava na rua não dava para falar com a pessoa, não se tinha como saber onde estava. Era preciso esperar a pessoa ligar quando chegasse ao local de destino ou usar um orelhão[2] (telefone público que estava quase sempre quebrado quando se encontrava algum).

Quando os celulares chegaram foi uma revolução. No início era só um telefone. Logo depois eles já permitiam saber quem estava ligando (até então era sempre uma surpresa). Os primeiros smartphones só vieram a ficar populares quase no final da primeira década do século atual (em 2007, com o lançamento do primeiro Iphone).[3] A partir de então os avanços têm sido dados a passos largos. Hoje, com os celulares é possível se fazer quase tudo, inclusive ligar.

Stock market analyze with digital tablet

No início dos anos 1990 já tínhamos computadores no Brasil, é claro. Mas, as máquinas não eram nada parecidas com as que temos hoje. Eram lentas. Não estavam ligadas à rede, embora já fossem bastante úteis antes da internet. Antes deles, por exemplo, os textos eram datilografados. Erros eram quase fatais antes de “copiar e colar”. O ganho de produtividade foi significativo. Isso sem falar nas poderosas planilhas eletrônicas que facilitaram a vida de muita gente. 

Uma boa parcela da população já usava computadores para trabalhar e jogar, quando os e-mails “chegaram”. Os e-mails foram novamente uma revolução na forma de comunicação entre as pessoas. Antes deles, as pessoas mandavam cartas, telegramas e fax (empresas). Não precisa dizer que as cartas levavam muito tempo para chegarem ao seu destino. Com os e-mails foi possível escrever algo, enviar e ter respostas rápidas. No início, isso precisava ser feito nos computares. Com os smartphones isso também mudou. Havia ainda a possibilidade de trocar mensagens instantâneas usando computadores. Mas, era preciso combinar um horário e ficar no computador no mesmo horário que a outra pessoa.

Hoje ninguém pensa muito nisso. Manda-se uma mensagem instantânea para qualquer lugar no mundo. E espera-se uma resposta rápida. Ligar para alguém virou coisa do “século passado” ou quase isso.

Esses dois casos são exemplos simples de coisas que mudaram a minha vida, e de quase toda a população mundial, de forma muito rápida, com grandes impactos na forma de comunicação pessoal. Mas, os grandes impactos se deram na forma de se fazer negócios, nas relações entre consumidores e vendedores e entre as empresas.

Informação e dados passaram a ser o grande recurso desse novo mundo. Talvez o primeiro grande exemplo de como a internet e a rede mundial de computadores (www – World Wide Web) mudou a forma de se fazer negócios, vem do eBay. Antes da era digital a experiência de compra padrão de um consumidor era buscar no mercado local o produto procurado. Se alguém queria comprar um sapato ou roupa o procedimento normal era ir ao centro de compra local (centro comercial ou um shopping center) e passear de loja em loja até achar o que procurava (ou não achar). A informação era limitada ao mercado local, tanto em termos de variedades quanto de preços.

O eBay surgiu originalmente para ajudar colecionadores. No entanto, a expansão disso para outros produtos foi quase natural. A rede começou a ofertar serviços que aproximavam os compradores dos vendedores, basicamente disponibilizando informações. A coisa não era tão simples. Um dos problemas era confiança e segurança. Será que o vendedor vai entregar o produto? Será que o consumidor vai pagar? E se eu tiver um problema com o produto ou com a entrega. Surgiu assim uma oportunidade para gerar segurança na forma de pagamento. O Mercado Pago faz isso hoje no Brasil, por exemplo.

Hoje, pesquisar preços é algo trivial. Há sites, muitos, que fazem isso e apresentam diversas opções. Em poucos minutos é possível ter uma noção das opções disponíveis e comprar o que se deseja. Ou até mesmo, como muita gente faz, ir tentar finalizar a comprar no mercado local, mas com todas as informações já pesquisadas.

Quer vender ou comprar algo? Há sites e aplicativos que ajudam nisso e resolvem o problema. Os custos de transações caíram em muitos mercados. O espaço para “atravessadores” foi também reduzido. Alguém que tem um carro pode ofertar diretamente para quem quer comprar. Os sistemas de reputação ajudam a identificar bons e maus usuários. Gerou-se uma forma de introduzir confiança e credibilidade.

A coisa evoluiu ainda mais e hoje quando alguém navega pela rede procurando coisas, as empresas estão coletando os dados e vão buscando formas de conhecer melhor os consumidores e suas preferências. O objetivo é tentar vender mais. Contudo, com tantos dados coletados a própria informação vira mercadoria.

Hoje a lista de atividades que o digital está associado é grande. É possível fazer quase tudo por lá. O varejo foi o começo. Mas o mundo digital mudou as relações também com os bancos, por exemplo. Os bancos digitais são uma realidade hoje. As moedas digitais idem. O pix é uma revolução na forma de pagamento.

Há avanços nas áreas de educação e saúde. Nessas duas áreas a pandemia acelerou o uso de tecnologias que já estavam disponíveis, mas que não eram usadas. As aulas remotas viraram regra. Atualmente, os alunos estão de volta às salas de aula, mas a experiência de ensino remoto vai deixar marcas que ainda são difíceis de identificar. Ficou claro para muita gente, por exemplo, que as aulas expositivas tradicionais não funcionam mais. Mas, como juntar o lado bom do digital com o físico? Desafio para os estudiosos e professores. Na saúde a pandemia quebrou o medo de usar a telemedicina. Funcionou bem e deve continuar. As regras estão mudando para acomodar isso.

Nesse novo mundo figital nem tudo são flores. Uma das preocupações principais é a segurança das informações. Como alerta Silvio Meira no item 12 do seu texto já citado quando lembra que estamos cada vez mais perto da internet das coisas:

“12 se tudo se conecta… tudo é atacado. segurança da informação se torna crítica. carros, aviões, marcapassos, lâmpadas, casas, escritórios, fábricas, usinas nucleares, redes elétricas, bonecas, babás eletrônicas. se alguma coisa está ou puder ser conectada, estará na IoTeRP, a internet das coisas em risco permanente. pense num problema de segurança da informação.”

Problemas de vazamentos de dados pessoais têm chamado a atenção e precisam ser enfrentados com urgência.

Alguns desafios para a economia

Um dos desafios para economia é como lidar com esse novo mundo. Economia Digital tem sido definida como o ramo da economia que estuda os bens intangíveis de custo marginal zero na rede. Todos os ganhos de produtividade gerados pelas tecnologias existentes e a serem criadas são importantes. Há ganhos evidentes para os consumidores em termos de eficiência e bens gratuitos disponíveis por exemplo. Mas, há economistas tentando entender os efeitos de acúmulo de informações e poder de processamento sobre a questão de problemas de privacidade e segurança de dados. Em particular, o acúmulo de ativos digitais pode criar, e tem criado, um enorme poder de mercado, especialmente para as plataformas, levando a um potencial de comportamento predatório e discriminatório.

Umas das principais formas para analisar um mercado é tentar entender o seu funcionamento e se os resultados são positivos para a sociedade. Os economistas chamam isso de análise de bem-estar econômico. Mercados mais competitivos tendem a gerar um maior bem-estar para a sociedade (maiores ganhos para produtores e consumidores). Quanto mais concentrado e menos competitivo for um mercado, menores tendem a ser os ganhos para a sociedade. Nesse caso, os monopólios representam o tipo de mercado de menor concorrência (uma única empresa, sem concorrentes). Em situações como essa, de monopólio por exemplo, os economistas passam a avaliar se o caso não seria uma falha de mercado.[4] Em geral, há políticas de regulação e controle que são utilizadas para evitar que monopólios de empresas em mercados de pouca concorrência prejudiquem os consumidores.[5]

Nesse sentido, umas das perguntas atualmente feitas é como tratar o tamanho e o poder de mercado das plataformas. Essas são possíveis falhas de mercado que talvez demandem a intervenção do governo para equilibrar os interesses de todas as partes, limitar o uso indevido do poder de mercado e desenvolver estruturas institucionais e legais eficazes. Esse debate esteve recentemente no centro das últimas eleições no Brasil, tanto a de 2022 quanto a de 2018. O tópico também é de interesse nos Estados Unidos e no Reino Unido (com o Brexit), por exemplo.

Como todas as áreas de estudo, não parece haver um consenso entre os economistas. Há os que defendem a necessidade de maior controle e intervenção e outros mais favoráveis a deixar o mercado seguir o seu rumo.[6] Talvez seja cedo para saber, mas o senso comum diria que devemos ter algo no meio do caminho. Ou seja, algum controle com liberdade para as empresas.

Alguns desafios para os economistas[AM1] 

A revista The Economist de 23 de outubro de 2021 faz uma provocação importante para os economistas, em especial para que trabalham com macroeconomia e políticas públicas.[7] Em linhas gerais o periódico lança o desafio de como os economistas podem permanecer importantes diante dos desafios da era digital e das grandes bases de dados, muitas delas quase em tempo real.

A crítica colocada em destaque é que muitas das análises econômicas se baseiam em dados defasados, de meses ou trimestres anteriores, sem dados instantâneos. Isso estaria gerando erros de análises e retardando as respostas às crises e problemas do mundo atual.

A revista cita, por exemplo, a demora de o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) ter tido para identificar a crise de 2008 que levou à crise mundial e à falência de bancos e empresas. A recessão teria começado em dezembro de 2007, mas os economistas só conseguiram observar isso quando os dados de dezembro de 2008 foram divulgados.

A boa notícia é que os economistas estão tentando achar respostas para isso. Um exemplo é dado pelo Opportunity insights (https://opportunityinsights.org/tracker-resources/), dirigido por Raj Chetty. Entre os projetos coordenados por Chetty, está um que combina dados não identificados, que vão de transações de cartão de crédito a folha de pagamento das empresas, para gerar uma imagem em tempo real dos indicadores econômicos dos Estados Unidos (gastos dos consumidores, desemprego, renda, vagas abertas, entre outros). O objetivo é identificar os problemas na hora que eles vão surgindo e possibilitar respostas rápidas para possíveis crises.

Esse tipo de análise pode fazer muita diferença no futuro e evitar que pequenos problemas ganhem escala e gerem crises maiores. Os desafios não são poucos e demandam, por exemplo acesso a dados que normalmente não estão disponíveis. Além disso, como tudo que é novo, há sempre críticas. No caso dessas novas abordagens os economistas apontam, por exemplo, para uma falta de uma modelagem mais formalizada que expliquem os resultados. Mas, o tempo dirá para onde a ciência vai evoluir.

Em resumo, a entrada no mundo digital transformou, e continua transformando a sociedade e a forma como os seres humanos fazem as coisas.  O mundo está ficando figital. É verdade que a transformação leva tempo e que esse processo é desigual entre setores e países. Mas, não há mais volta. Resta a nós tentar acompanhar o processo e, se possível, até tentar passar à frente. O desafio é grande mas o caminho está dado.


[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_digital

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Orelh%C3%A3o

[3] Aqui talvez valha pontuar algo que é constante na ciência em geral, mas é particularmente importante na era digital. A Apple não inventou o smartphone. Nem mesmo a tela sensível ao toque. Mas, o seu produto conquistou o público. A primeira referência a algo do tipo é feita em 1909, numa invenção de Nicola Tesla. Ainda no século passado a IBM e a Nokia apresentaram suas versões iniciais de smartphone. Claramente não tiveram sucesso. Entre as razões estariam o peso, funcionalidades ruins e bateria de pouca duração (uma hora de duração no caso da Nokia). (ver https://segredosdomundo.r7.com/primeiro-smartphone/) O ponto é que muito do que vemos hoje não foi criado de uma hora para outra. Há muito trabalho feito e muito aprendizado. Muitas vezes, são necessárias décadas até que uma tecnologia seja utilizada para o público em geral. Nesse sentido vale também ler o texto de Silvio Meira com o exemplo mais recente dos block chains (https://silvio.meira.com/silvio/21-anotacoes-sobre-2021/).

[4] Falha de mercado é a situação econômica onde um mercado não consegue produzir uma alocação natural que seja eficiente. Ou seja, nesses casos, as transações do mercado acabam gerando mais efeitos negativos para todos do que satisfazendo individualmente os ofertantes e os demandantes.

As falhas de mercado são frequentemente associadas a mercados não competitivos ou externalidades.

[5] Por exemplo, as empresas de energia elétrica são monopólios locais. Elas são reguladas no Brasil pela Aneel. Outros setores regulados são aviação, saúde e telefonia.

[6] Ver, por exemplo, o texto de Michael Spence, no Journal of Government and Economics 3 (2021).

[7] A real-time revolution will up-end the practice of macroeconomics (The Economist), 23 de outubro de 2021.