No Brasil, é histórica a associação entre a riqueza e o berço familiar. Mas existem episódios que fogem dessa regra, seja pelo tino empreendedor, pela criatividade e pelos acasos da história. Dentre esses, Delmiro Gouveia é uma espécie de símbolo na região Nordeste.
Ele nasceu de uma família pobre do Sertão e se tornou um pioneiro da inovação no Nordeste, trazendo industrialização, energia elétrica e até um ‘shopping center’ para o Recife do final do século 19.
Delmiro nasceu no interior do Ceará, em 1863, mas se mudou para Pernambuco ainda na infância. De família pobre, trabalhou desde criança, ficou órfão aos 15 anos e virou bilheteiro do trem urbano da época, a maxambomba.
Também trabalhou como caixeiro e despachante no Porto do Recife, mas foi num outro ramo que conseguiu sucesso e independência: a venda de peles. Nessa época, as peles tinham várias finalidades e movimentavam milhões de dólares.
Já bastante rico, construiu um empreendimento que impactou bastante o Recife: o Mercado Modelo Coelho Cintra, que ficava no Derby. Muitos historiadores, a exemplo de William Edmundson, apontam que esse pode ser considerado o primeiro shopping center do Brasil.
O termo “shopping” não era usado, mas tinha a mesma finalidade: reunia com 264 compartimentos alugados a comerciantes, restaurantes, teatro e até hotel. Delmiro aproveitou um espaço que antes sediava grandes corridas de cavalos – o que deu origem ao nome “Derby” ao bairro.
No Recife ele também fundou o Hotel Grand Internacional, na época um dos mais modernos da região, e uma usina de açúcar que adquiriu a maquinaria mais moderna da época.
Os baixos preços do Mercado incomodaram a concorrência, algumas elites e políticos. O então prefeito do Recife Esmeraldino Bandeira colocou diversos entraves. Delmiro, então, resolveu fazer um pedido de paz ao líder do grupo que dominava Pernambuco: Rosa e Silva, o mesmo da Avenida da Zona Norte do Recife.
Nessa época, Rosa e Silva era vice-presidente da República e presidente do Senado, morando no Rio. Delmiro o abordou na saída do Senado e, após ser ignorado, bateu com a bengala nas costas do poderoso oligarca. Isso virou um escândalo nacional.
A ousadia custou caro: pouco depois o Mercado Coelho Cintra foi completamente destruído por um incêndio criminoso, arquitetado pelo grupo político. Delmiro saiu de Pernambuco e foi reconstruir sua vida em Alagoas.
Ele voltou a vender peles na Vila da Pedra, que possuía a estação de uma ferrovia. Expandiu negócios para linhas/algodão e conseguiu derrubar o monopólio da empresa escocesa Machine Cottons na região.
A fábrica logo dominou o mercado nacional, chegando até nos mercados da Argentina, Chile e Peru. Era um modelo de organização, com diversos pavilhões onde ficavam os teares, uma vila operária, ambulatório médico, cinema e ringue de patinação.
Como o vilarejo de Pedra ficava perto da cachoeira de Paulo Afonso, Delmiro decidiu investir numa grande novidade da época: a eletricidade. Lá foi feita a usina de Angiquinho, a primeira usina hidroelétrica do Nordeste.
Apesar de visionário, Delmiro também colecionou muitos inimigos pelo seu temperamento. Ele foi assassinado em 1917, aos 54 anos. Até hoje não se sabe ao certo quem foi o assassino ou mandante.
Hoje a cidade de Pedra, em Alagoas, se chama Delmiro Gouveia. A Usina de Angiquinho hoje é considerada como o começo da história da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
O prédio Mercado Cintra Coelho foi reformado na década de 1920, junto com obras em todo o bairro do Derby, e virou o Quartel da Polícia Militar, função que tem até hoje.
Visionário e ousado, Delmiro Gouveia ainda é um exemplo da criatividade e da inovação que pulsa no Nordeste.
Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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