Na história da humanidade, tecnologias são criadas e habilitam comportamentos que podem criar novos mercados e possibilidades de negócios. Nesse artigo, vamos abordar como a internet, juntamente com outras tecnologias – e frente a um contexto de descontentamento de parte da sociedade com a indústria fonográfica – possibilitou o surgimento de plataformas de músicas online com acesso a qualquer música do mundo a partir de poucos cliques.

NO PASSADO

Se voltarmos 30 anos no tempo, vamos lembrar dos CDs, das fitas K7 e dos discos de vinil. Nessa época, havia um limitado conjunto de gravadoras e bandas e artistas precisavam passar pelo crivo desse mercado para conseguir gravar um álbum e divulgar seu trabalho através de turnês. 

O modelo de negócios era basicamente centrado na venda de CDs e na realização de shows, sendo a maior fatia do faturamento pertencente às gravadoras, que comumente detinham os direitos autorais sobre os materiais produzidos. Os custos associados à gravação, produção, distribuição e divulgação dos discos eram consideravelmente altos, o que demandava elevados gastos de capital (CAPEX), praticamente proibitivos para a maior parte dos artistas.

Houve uma época onde os preços dos CDs eram consideravelmente altos, gerando insatisfação por uma parte considerável da população. Com a democratização do acesso à internet, as pessoas começaram a compartilhar arquivos de uma forma geral. Houve então um outro movimento de popularização, relacionado à adoção do formato mp3, o qual permitia uma compactação da ordem de 10x sem perdas consideráveis de qualidade.

Com essa conjuntura, arquivos de música passaram a estar disponíveis para compartilhamento em servidores espalhados pela internet. A tecnologia foi avançando e foram criados protocolos de compartilhamento de arquivos diretamente “entre pares”, também conhecidos como P2P.

No compartilhamento P2P, computadores trocam arquivos diretamente e um serviço explorou isso para a troca de arquivos MP3 musicais – o Napster, surgido em 1999. A plataforma viralizou mundialmente, gerando grandes perdas de faturamento para a indústria fonográfica, pois uma parte significativa dos clientes parou de comprar CDs.

Outra inovação tecnológica que agravou a situação do mercado foi a criação do protocolo BitTorrent, uma tecnologia de compartilhamento de arquivos também baseada na estrutura de P2P, que permite que os usuários compartilhem e distribuam dados diretamente entre si, sem a necessidade de um servidor central. No BitTorrent, cada usuário que baixa um arquivo também se torna uma fonte para esse arquivo, ajudando a distribuí-lo para outros usuários. 

Isso é feito através da divisão do arquivo em muitos pedaços pequenos, que são baixados de diferentes fontes simultaneamente, aumentando a eficiência e a velocidade do download. Os pares também se comunicam entre si para trocar informações sobre quais partes do arquivo eles possuem e quais partes precisam, permitindo que o arquivo seja baixado de maneira distribuída.

A introdução do BitTorrent revolucionou a distribuição de arquivos na internet. Antes do BitTorrent, o download de arquivos grandes exigia uma quantidade significativa de largura de banda do servidor e costumava ser lento e ineficiente. Com o BitTorrent, o download de arquivos grandes se tornou mais rápido e eficiente, pois a carga é distribuída entre múltiplos usuários, em vez de ser suportada por um único servidor.

Entretanto, o BitTorrent fomentou a disseminação de conteúdos protegidos por direitos autorais de forma ilegal – principalmente livros, músicas, filmes e séries. Um dos portais da internet que se consolidou como referência na publicização de torrents foi o “The Pirate Bay”, criado em 2003 por Peter Sunde, Fredrik Neij e Gottfrid Svartholm na Suécia.

NOVOS RUMOS

Em 2006, a indústria da música perdia bastante receita com a queda das vendas em dispositivos físicos, representando mais de 31% do faturamento total em comparação ao faturamento do ano 2000, perda estimada a partir dos dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), disponíveis no estudo “Global Music Report 2023” e mostrado na figura a seguir.

No gráfico, nota-se que o mercado musical de mídias físicas foi diminuindo, ano a ano, após 2001, enquanto as modalidades digitais e outras foram crescendo em participação, as quais se tornaram a principal fonte de receita para a indústria musical desde 2013. Como foi esse processo de transformação?

Em agosto de 2006, Daniel Ek e Martin Lorentzon, dois empreendedores suecos que tinham experiência em anúncios online, viram uma oportunidade para o mercado musical. Eles fundaram o Spotify enxergando uma alternativa legal à pirataria de música, fornecendo aos usuários um acesso fácil a uma vasta biblioteca de músicas, a apenas um clique, sem as interrupções e os problemas de qualidade comuns nas plataformas de torrent. 

Para atender aos requisitos de qualidade definidos pelos fundadores, a equipe técnica do Spotify precisou mergulhar em desafios técnicos envolvendo desde os protocolos de comunicação convencionais da internet – como o TCP/IP – até mesmo soluções de balanceamento de tráfego e redes P2P para otimizar os custos com servidores dedicados. Para demonstrar isso, temos um levantamento dos pedidos de patente realizados pelo Spotify desde 2007 até 2022, os quais superam a marca de mil pedidos de patente desde a criação, um número expressivo para qualquer empresa.

Entretanto, a principal barreira encontrada naquele momento não foi a técnica mas a negociação com as gravadoras detentoras dos direitos autorais. A proposta de ter uma plataforma de música online que oferecia “música grátis” não era bem vista pela indústria, apesar da previsão de remuneração para as gravadoras proporcional às taxas de reprodução das músicas. Além disso, o Spotify apostava fortemente no modelo de anúncios online como forma de captação de receitas. 

Após dois anos de desenvolvimento, o Spotify foi lançado oficialmente ao público em outubro de 2008. Inicialmente, o serviço estava disponível apenas por convite para controlar o crescimento. O modelo de negócios proposto era freemium, isto é, os usuários podem ouvir músicas gratuitamente juntamente com anúncios. Caso desejem ter acesso a funcionalidades premium como criar listas de reprodução personalizadas, reprodução contínua sem anúncios e a possibilidade de ouvir músicas offline, uma mensalidade é cobrada. 

Em 2011, o Spotify expandiu seu alcance ao ser lançado nos Estados Unidos. Esse marco significou a entrada da empresa em um dos maiores mercados de música do mundo. Até 2012, o Spotify aumentou sua base de usuários para mais de 15 milhões de usuários ativos e 4 milhões de assinantes premium em todo o mundo, demonstrando a crescente popularidade do modelo de streaming.

CONSOLIDAÇÃO

Em 2015, a plataforma continuou a inovar e melhorar a experiência do usuário ao apresentar o Discover Weekly, uma playlist personalizada que é atualizada todas as semanas com músicas adaptadas aos gostos de cada usuário. Nesse momento, a plataforma atingiu 75 milhões de usuários ativos, sendo 20 milhões deles assinantes premium.

Em 2018, o Spotify estreou na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE) por meio de uma listagem direta, uma abordagem pouco convencional que permitiu que a empresa se tornasse pública sem levantar novos recursos. É um método alternativo para uma empresa ir a público, que difere do processo tradicional de Oferta Pública Inicial (IPO, em inglês).

Entre 2020 e 2021, o Spotify alcançou quase 300 milhões de usuários ativos e continuou a investir em podcasting, adquirindo a rede de esportes e cultura pop The Ringer e adicionando conteúdo exclusivo de criadores de alto perfil, como a produtora de Barack e Michelle Obama, Higher Ground. Em 2021, o Spotify se tornou um dos principais players da indústria de streaming de música e uma força crescente no mundo dos podcasts.

Em setembro de 2022, a Netflix lançou uma série denominada “Som na Caixa” (The Playlist) onde a história da criação do Spotify é contada sobre seis pontos de vista diferentes, um em cada episódio, abordando desde o olhar do fundador, Daniel Ek, até o olhar de uma artista fictícia, Bobbi T, passando pelo principal investidor, por um empresário da indústria, pelo líder técnico da equipe (CTO) e pela advogada da empresa. Além do entretenimento, a série traz histórias sobre inovação disruptiva e empreendedorismo tecnológico, mostrando inclusive como as tecnologias e plataformas de streaming estão impactando a vida de músicos e produtores.

O Spotify se consolidou como a principal plataforma de streaming de música e podcasts do mundo, vencendo plataformas de outras gigantes como: Amazon Music, Apple Music e YouTube Music. Além disso, briga diretamente com plataformas como Deezer, a qual possui uma proposta de valor semelhante ao Spotify.

Um dos diferenciais que permitiu ao Spotify crescer e se diferenciar das outras plataformas foi o investimento em pesquisa e desenvolvimento, além de ter um forte enfoque em dados. Todas as músicas da base do Spotify são catalogadas e descritas a partir de um conjunto de atributos musicais, o que permite a construção de algoritmos inteligentes para a construção automatizada de listas por similaridade a partir de um conjunto de músicas de referência.

AVANÇOS E DESAFIOS

Além disso, a empresa possui iniciativas de pesquisa e desenvolvimento em diversas áreas, desde sistemas de recomendação a aprendizagem de máquina. De 2014 até 2022, mais de 100 publicações científicas foram realizadas, conforme disponível no portal da empresa.

Apesar de todos os pontos apresentados, o Spotify está lutando contra grandes desafios como a pressão dos artistas em relação ao modelo de remuneração da plataforma, uma vez que a parte mais expressiva dos valores repassados pela empresa ficam com as gravadoras detentoras dos direitos autorais, e com novos desafios gerados pela tecnologia como bots automatizados que “escutam músicas”. Esses bots podem manipular os rankings de streaming para gerar ganhos artificiais para os artistas.

Há um ano, a cantora Anitta foi envolvida numa polêmica quando o hit “Envolver” atingiu o topo do Spotify por, supostamente, usar recursos artificiais de fãs da artista. Essa busca para identificar conteúdos artificiais imitando o comportamento humano é um desafio que tem sido amplificado com a popularização da inteligência artificial (IA) e torna-se cada vez mais difícil, haja vista a verossimilhança dos conteúdos e interações artificiais geradas por essas ferramentas inteligentes.

Fernando Sales é professor do Departamento de Engenharia Biomédica da UFPE e Pesquisador do Porto Digital

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