O que empresa Uber tem a ver com a greve dos roteiristas em Hollywood? Muito, sendo possível até construirmos uma linha entre a chegada do aplicativo de caronas remuneradas e as gravações das suas séries favoritas sendo interrompidas – com uma revolução do modelo de trabalho no meio. E essa revolução atende pelo nome de “gig economy”.
A “Economia sob demanda” (que é como a chamamos do lado de cá da Linha do Equador) é um termo que se refere ao mercado de trabalho que depende cada vez mais de posições temporárias ou de meio período preenchidas por profissionais independentes e freelancers, em vez de empregados permanentes e em tempo integral. O termo vem do mundo da música, onde os artistas reservam “gigs” que são apresentações únicas ou de curto prazo em vários locais.
Impulsionada pela era digital, a gig economy facilita a conexão entre prestadores de serviços e clientes por meio de plataformas online, como a já citada Uber, além de Airbnb, iFood e Workana. Essas plataformas oferecem serviços mais baratos, eficientes e adaptáveis às necessidades e demandas do momento. Além disso, permitem que os trabalhadores tenham mais flexibilidade e independência para escolher quando, onde e como trabalhar.
No entanto, esse modelo também traz desafios e riscos para trabalhadores e para a sociedade. Trabalhadores da gig economy geralmente não têm segurança no emprego, benefícios sociais, proteção trabalhista ou representação sindical. Eles também podem enfrentar precarização, instabilidade, isolamento e competição acirrada. A gig economy pode ainda contribuir para a desigualdade social, a evasão fiscal, a informalidade e a fragmentação do mercado de trabalho. Foi o que aconteceu com os roteiristas lá nos Estados Unidos.
Se você está achando estranho que a nova temporada do show que vinha acompanhando ainda não estreou, pode culpar a “uberização” dos roteiristas por isso. Pelo menos é o que defende a categoria, que arregimentou mais de 11 mil profissionais de cinema e televisão do sindicato Writers Guild of America numa greve geral contra a deterioração das condições de trabalho, salários considerados injustos e a possibilidade de perder seus empregos para a inteligência artificial.
De acordo com a organização de trabalhadores, Netflix, Amazon, Apple, Disney, Discovery-Warner, NBC Universal, Paramount e Sony criaram uma gig economy dentro da força de trabalho, com contratos menores do que uma semana (praticamente recebendo por episódio) o que, na prática, tornou a profissão totalmente freelance.
“Estamos olhando para um futuro onde os escritores podem ser contratados por dia para entrar e trabalhar em uma série em andamento”, explica Lisa Takeuchi Cullen, escritora e produtora de “Law and Order: SVU”. “Os escritores já trabalham como freelancers, mas os arranjos do dia-a-dia são mais imprevisíveis e os deixam em apuros, incapazes de prever suas finanças ou pagar o aluguel”.
Esses desafios não estão restritos aos EUA e muito menos à profissão de roteirista, com muitos governos começando a interferir na economia sob demanda. Na semana passada, os estados-membros da União Europeia chegaram a um acordo para as regras que regem o trabalho temporário no bloco, buscando proteções mais fortes para os 28 milhões de pessoas que movimentam esse setor na região. Os benefícios, que serão negociados com o Parlamento Europeu, incluem uma previdência social para os trabalhadores, o que pode levar a custos extras para as empresas.
Na Índia, desde 2020 novas leis garantem previdência social e uma espécie de plano de saúde para os trabalhadores temporários, mas até agora não foram implementadas. No Reino Unido, a Justiça deu ganho de causa para motoristas de Uber para serem classificados como funcionários da empresa e receberem os direitos e benefícios trabalhistas relacionados, e estabeleceu precedentes para outras plataformas. Voltando para os EUA, o estado de Minnesota aprovou um projeto de lei que garante o pagamento mínimo para motoristas de Uber e Lyft, mas que foi vetado pelo governador na semana seguinte.
Por lá, é estimado que entre 10% e 15% dos trabalhadores dependam de trabalhos alternativos ou temporários (e quase um terço complemente sua renda com essas plataformas). Aqui no Brasil, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) calcula que cerca de 4 milhões de pessoas trabalham por meio de aplicativos digitais, com mais de 1,4 milhão delas aderindo ao modelo de trabalho nos últimos cinco anos – um crescimento de 60% de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Essa aceleração fez com que o Ministério do Trabalho e Previdência colocasse essa pauta como prioridade, e espera votar a questão ainda este ano.
A proposta é criar uma modalidade de contrato de trabalho diferenciado, sem necessariamente caracterizar vínculo empregatício, criando uma categoria distinta da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas ainda assim com garantias, como o recolhimento do INSS, direito a aposentadoria, pensão por morte, auxílio invalidez, entre outros benefícios. Mais ou menos como são os MEI. Criar um regime jurídico específico para esses trabalhadores poderia reconhecer a sua autonomia e flexibilidade, mas também lhes garanta direitos mínimos e contribuição previdenciária.
Mas não dá para fazer nada disso sem ouvir os próprios trabalhadores e quais são as suas demandas reais. Apesar da precarização e da falta de benefícios, 71% dos freelancers nos EUA estão satisfeitos e gostam de ter flexibilidade em seus horários, segundo um levantamento da Statista. Em outra pesquisa, da Pew Research, 94% deles acredita que os empregos em plataformas são uma boa maneira de ganhar dinheiro extra e mais de 80% das grandes empresas norte-americanas querem “aumentar substancialmente o uso de uma força de trabalho flexível”.
O modelo da gig economy ainda é mais atraente para os mais jovens. Outra pesquisa, essa da Deloitte, apontou que o povo da Geração Z e os millenials colocam o alto custo de vida como sua “principal preocupação social”.
E para conseguir uma grana extra, 46% dos Gen Z e 37% dos millennials relataram ter um emprego paralelo, além de seu emprego principal. Para juntar a necessidade de uma verba extra com o anseio por frear a precarização do trabalho, muitos grupos estão se unindo em cooperativas digitais, desenvolvendo plataformas autogeridas pelos próprios trabalhadores, sem intermediários.
Nas cooperativas digitais, há um maior controle por parte dos trabalhadores sobre o processo produtivo, a distribuição dos lucros e as decisões coletivas. Várias delas já estão em prática, como a Resonate, um serviço de streaming que permite que artistas participem da gestão e recebam uma parcela maior dos rendimentos. Na área do turismo, há o Fairbnb, uma plataforma de aluguel de residências que destina metade dos lucros para o financiamento de projetos locais.
A Stocksy United, que une fotógrafos que trabalham para bancos de imagens em todo o mundo, dá aos profissionais 50% das vendas e 90% dos royalties, além de ter voz ativa nas decisões da cooperativa. No Brasil, o exemplo mais popular talvez seja o da equity crowdfunding AppJusto, que possui uma taxa fixa de remuneração para os entregadores (R$ 10 até 5km e mais R$ 2 por km adicional), e cobra uma comissão de 5% no modelo com operação logística e 2,42% da operadora financeira para restaurantes.
Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF
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