Bairro é o único do Recife onde a caminhabilidade tornou-se prioritária, com preferência para pedestres e ciclistas em vez de carros. O modelo é incentivado pelo Porto Digital – com suas mais de 360 empresas embarcadas – e por políticas públicas da Prefeitura do Recife. Experiência segue tendência internacional de uma “Cidade de 15 minutos”, modelo em que as pessoas levem esse tempo em deslocamentos para cumprir seus afazeres diários
De segunda a sexta-feira, uma ou duas vezes por dia, Rodrigo Carvalho deixa as dependências de dois andares da Puga Studios, uma empresa de desenvolvimento de games onde hoje é CEO, e caminha pela Rua do Apolo em direção à Rua Maria César para tomar um café gelado. Um prazer extra é seguir em direção ao Marco Zero pela fruição de passar pelo Edifício Luciano Costa, ou contemplar todo o conjunto do patrimônio predial na companhia de clientes estrangeiros.
“É difícil que haja no Recife uma área que nos permita essa liberdade de ir e vir, caminhando, curtindo o lugar. Não estou aqui por causa dos incentivos, uma vez que trabalho com exportação. Estou aqui pelo lugar”, conta Rodrigo, que é com frequência visto na companhia de colegas de trabalho e prega a importância do aperto de mão, olho no olho e troca de experiências. “É nostálgico para mim, tanto para o profissional quanto para o pessoal”.
Fundada por Rodrigo, a Puga Studios, vendida em 2022 a um grupo ucraniano, é um exemplo na indústria mundial de games; ano passado, foi citada pela Forbes, quando a produção brasileira se destacava no relatório da XDS (External Development Summit), um importante evento internacional da indústria de jogos.
Também com apropriação da área, o comerciante Rilson Francisco, dono de uma banca de jornais e doces, criou-se no burburinho da Avenida Rio Branco. Aos 56 anos, gosta de conversar, andar de bicicleta e observar o dia no bairro. Lá está, lembra, desde a época em que o local “era uma zona”, de boemia e de prostíbulos. “Mudou tudo”, diz ele.
Tende a mudar mais, com o complexo tecnológico do Porto Digital fomentando a cultura da recuperação e ocupação de imóveis do centro histórico, promovendo e incentivando a caminhabilidade, e contando com projetos de políticas públicas da Prefeitura do Recife.
O perímetro de 100 hectares que forma o núcleo central do Porto Digital, e em particular a Avenida Rio Branco, tem se tornado um interessante e bem-sucedido laboratório de interação social e de modelo urbanístico, com potencial para ser experimentado por outros bairros e cidades.
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Essas transformações acontecem com um público de idade e perfis variados, formando um laboratório onde as relações humanas são mais estreitas, os encontros presenciais mais frequentes, o ambiente urbano conta com um design centrado no ser humano, dialogando com todos e se mostrando acolhedor para o pedestre e o ciclista.
Na Rio Branco e em outras vias do Bairro do Recife, em algum momento, alguém pode deparar-se com o entra e sai das bicicletas operadas pelo projeto Itaú/Timbici. É numa delas que a jovem Sara Michelly desloca-se do terminal de Santa Rita para ir trabalhar na Prefeitura do Recife. Neste mesmo trajeto dela, Sara costuma ver os animados estudantes secundaristas das cercanias; e passa ao lado de dezenas de pessoas que não conhecem, mas que compartilham o mesmo espaço que ela. Gente como Reginaldo Lopes, funcionário da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado.
Ou Fernanda Breghirolli, diretora de Tecnologia da Accenture, gigante global que se instalou na Av. Alfredo Lisboa, ao lado do Marco Zero, o maior centro de inovação da empresa na América Latina e principal base para o desenvolvimento de soluções inovadoras, empregando 3 mil funcionários.
Fernanda está na cidade com a família há oito anos. “Utilizo muito o bairro em horário comercial. Estamos instalados em três escritórios, nos Armazéns 9, 12 e 13, e a gente sempre faz a locomoção entre os escritórios andando. Vamos de um prédio para o outro para reuniões e esse percurso é muito prazeroso”, conta Fernanda, lembrando que o patrimônio cultural foi um atrativo para a instalação da empresa, e hoje serve de vista panorâmica para fotos elogiadas por colegas de trabalho de outros estados. De fora para dentro, a Accenture incorporou a cultura recifense no design ambiental interno da empresa. O presidente da Accenture para o Brasil e América Latina, Rodolfo Eschenbach, visitou o local em fevereiro e pôde constatar tudo isso em caminhada ao longo dos três armazéns que a empresa ocupa às margens do Rio Capibaribe.
DESIGN URBANO COMUNITÁRIO
Aqui, nesse miolo do Recife, as pessoas têm testado uma vida sem dependência exclusiva de automóveis; e lembra-se que a redução do uso de veículos é considerada um marcador-chave para o design comunitário sustentável.
Em todo o Recife, os carros são apenas a minoria barulhenta. No horário do pico de trânsito e de trabalho, nunca se pensa nessa questão, mas a constatação é respaldada pela estatística. A mobilidade a pé, de bicicleta, transporte coletivo e metrô são modais muito mais usados no Recife, como mostra o Plano de Mobilidade Urbana do Recife/ Prefeitura do Recife/Pesquisa de Origem-Destino Metropolitana do Recife. Dado revela que 55% da população da Região Metropolitana percorre até 4 quilômetros por dia, somando locomoção de casa para trabalho e para outras atividades.
O Bairro do Recife corrobora o conceito de que a mudança sistêmica de um ambiente com intervenções urbanísticas se presta como melhor aliada à conscientização social e à mobilidade urbana. E com um bônus: a rara visão do céu livre, com uma angulação que pode chegar a 120 graus. Com um espalmar de mãos viradas para cima e unidas pela base do punho, simulando um compasso, se confirma. Poucos espaços urbanos e centros históricos do Brasil permitem este feito, em virtude do adensamento de construções.
Enquanto se admira o céu (ou as sombras de frondosas árvores que fazem belas nesgas no chão com a luz do sol) e se passeia pela história do primeiro bairro da capital pernambucana, neste ambiente de empreendedorismo vigoroso, só se fala de futuro. A experiência vista hoje tende a ser ampliada, com projeção de abertura de novos hotéis de grande porte, espaços para entretenimento, e o contínuo aumento do Porto Digital em cifras e pessoas.
O complexo do Porto Digital teve expansão de 150% entre 2018 e 2022 (acumulado de R$ 4,75 bilhões em faturamento das empresas só no ano passado). O volume de colaboradores hoje passa de 17 mil entre empreendedores e funcionários, vinculados a 350 CNPJ’s. “Temos uma preocupação grande com o desenvolvimento econômico, mas também com a questão do território. Afinal, este bairro foi onde o Porto Digital nasceu. Aqui está nossa alma”, diz Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, um entusiasta da caminhabilidade e das bicicletas.
O “ANTIGO” COMO LUGAR
Durante a semana, em horário comercial, ou final de semana usado como lazer, o Bairro do Recife, o Recife Antigo, ou, para usar uma definição cada vez mais comum nos dias de hoje, “o Antigo”, consolida-se como lugar. Onde se pode ter ao mesmo tempo “paisagem, texturas (o que inclui a escala humana) e afetos”, como sempre gostou de teorizar Cláudio Marinho, engenheiro urbanista, um dos conselheiros e um dos fundadores do Porto Digital.
Ele é o visionário, que, em 1999, convenceu todos sobre a instalação do Porto Digital no lugar certo, em um centro histórico com passado, mesmo longe do centro de pesquisas e inovação universitária. Paisagem, texturas e afetos formam a tríade de fundo para uma vivência plena de mobilidade ativa, caminhabilidade, seja a pé ou pedalando, alimentando encontros fortuitos face to face, ou cara a cara, como preferir o interlocutor ou interlocutora.
Para o fomento de ideias criativas, de mais negócios e mais bem estar físico, cultural e mental de cada um. Para além da vida laboral, beneficiando ainda os turistas do Marco Zero, do Centro de Artesanato, do Paço do Frevo, os visitantes da Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira das Américas, com 386 anos de fundação (datada do Século XVII, período Holandês). O Bairro do Recife Antigo é um lugar com paisagem, texturas humanas e afetos, que pode ser ocupado durante o dia e à noite. (Um parêntese necessário e urgente: hoje, o Recife Antigo durante o dia é um bairro; à noite, outro. Ao escurecer, muitas pessoas se sentem inseguras. O cenário noturno aguarda dias melhores.)
O QUE É UM LUGAR
“É resultado da relação subjetiva entre o homem e o espaço, estabelecendo uma relação de identidade e pertencimento. Pode ser seu bairro, rua, cidade, pelos quais você possui um sentimento” . Claudio Hansen, professor de Geografia, Geopolítica e Gestão de Território (UFRJ).
O desejo, que em princípio pode ser visto por alguns como utópico, é que este epicentro recifense alavanque um movimento social pela melhoria da qualidade de vida das pessoas e da cidade, multiplicando-se por outras áreas do Recife.
SERIA MESMO UMA UTOPIA?
“Cabe à sociedade se organizar e cobrar dos poderes públicos”, diz a arquiteta Maria Ermelina Brosch Malatesta, de São Paulo, conhecida como Meli Malatesta, uma das maiores autoridades em mobilidade ativa do Brasil. “Acredito na sociedade. A sociedade é a voz que representa a democracia, que representa a justiça e que vai exigir, junto ao poder público, o cumprimento das suas obrigações”.
De utopia, os entusiastas do Porto Digital entendem; 22 anos depois da fundação do ecossistema tecnológico, o bairro e esta ilha de 100 hectares crescem em volume de negócios, empreendimentos e circulação de pessoas. Nele, é visto o sonho de Cláudio Marinho e do cientista, professor e empreendedor Silvio Meira, defendido por volta de 2000.
Silvio falava em “fazer do Bairro do Recife um reagregador para o centro”, instrumento de “redesenho do espaço urbano” e do papel maior que o Porto Digital precisava assumir, para além daquele para o desenvolvimento tecnológico. Já em novembro de 1998, Cláudio, que foi secretário Estadual de Planejamento e de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, concedia entrevistas prometendo “digitalizar a economia”, desejando um “fundo de desenvolvimento do Bairro” e afirmando que a criação de um Business Center no Bairro do Recife “era uma questão de honra” para ele.
Com o enraizamento atual das mais de 360 empresas embarcadas no ecossistema do Porto Digital – empregando mais de 17 mil profissionais – , vê-se o intento mantido nos dias atuais.
A ocupação de áreas como o da Avenida Rio Branco, via que liga o Cais do Apolo ao Marco Zero, o Bairro do Recife e todo o quadrilátero que representa o Porto Digital é muito mais sobre urbanismo que sobre mobilidade urbana. E o urbanismo diz respeito à regulação, controle e planejamento do espaço nas cidades.
É sobre uma cidade que abraça, ouve e fala.
Quem dera estivesse aqui o poeta recifense Carlos Pena Filho para traduzir melhor em palavras esse lugar. Na falta dele para um café ou um chopp, quem senta no banquinho e conhece a poesia de Carlos Pena Filho, fica com a lembrança dos versos de “O início”, em Guia Prático da Cidade do Recife, em que ele afirma “(…) é do sonho dos homens que uma cidade se inventa”.
Carlos Pena Filho era um “flâneur do Recife”, afirmou na sua dissertação de mestrado Juarez Nogueira Lins. A expressão pode ser traduzida como “passeador” ou “andarilho” e foi inventada por Charles Baudelaire (1821 – 1867), numa referência a pessoas que observam a cidade ou seus arredores, vendo e sentindo o lugar. Sem qualquer interesse por compras impecavelmente embaladas ou outros apelos de consumo; só com o desejo de observar as pessoas e a vida ao redor.
É esse andarilho, Carlos Pena Filho, o melhor artista para falar do Recife histórico e da apropriação de espaços. Um apaixonado pelo lugar, que tinha o querer por uma cidade “inventada” a partir dos homens:
Guia Prático da Cidade do Recife – O início / Carlos Pena Filho
“No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa”.
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Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados.
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