Até outubro de 2022, Rodrigo Carvalho era dono da Puga Studios, empresa de games que faz negócios tipo exportação, emprega hoje 150 pessoas no Brasil e acumulou faturamento de R$ 20 milhões no ano passado até ser vendida para uma empresa ucraniana. Foi neste bairro que ele teve seu primeiro trabalho, no Porto Digital, em 2009. Próximo do Edifício Luciano Costa, onde aquela que viria a ser sua mãe, Ivone, conheceu aquele que seria seu pai, Valdir. Seu Valdir era despachante de navios quando levava Rodrigo, por volta dos 8 anos, em um Fusca branco para que ele conhecesse as dependências das embarcações. O empreendedor, usuário contínuo do Porto Digital há muitos anos, hoje defende a ampliação dos espaços das calçadas e das moradias privadas para que o entorno tenha um movimento maior. O comércio agradece.

Rilson Francisco, o dono da banca de jornais e cordéis – que vende de cigarros a picolé estilo paleta italiana, produzido no município agrestino de Garanhuns – tem sido uma testemunha ocular das transformações gradativas do Bairro do Recife. O pai dele era dono da banca e levava Rilson agarrado na bermuda (“Era muito pequeno e faltava mão para segurar nele”). Viu na década de 1990 o apogeu boêmio da época dos bares da Bom Jesus, que, aliás, não é uma vizinha qualquer. É bem famosa. Para lembrar: em 2022, ela foi eleita a 3º mais bela rua do mundo pela revista americana Architectural Digest, especializada em arquitetura, numa lista de 31 indicações (53 Belas Ruas Ao Redor do Mundo | Resumo arquitetônico).

Rilson presenciou o embrião da ocupação das empresas do Porto Digital, início dos anos 2000, a requalificação do boulevard da Avenida Rio Branco pela Prefeitura do Recife e Governo do Estado, o crescimento de empresas de tecnologia e empresas estatais instaladas na região e agora aguarda a conclusão de hotéis, como o Hotel-Marina e o do Centro de Convenções, que estão sendo construídos na antiga área dos Armazéns. “Aqui é um caldeirão cultural, um carnaval da democracia. Todo mundo se encontra, você vê gente de todo o tipo e eu acho fantástico observar as pessoas”.

Avenida Rio Branco foi requalificada e passou a ser uma passarela exclusiva para pedestres – Crédito: Divulgação/Porto Digital

E tem até exemplo para ilustrar. “Às vezes, fico vendo uma criança passar aqui sozinha e eu acompanho para evitar que se perca. Depois, muitas vezes percebo que a família está perto. Se as pessoas deixam isso acontecer, é porque o ambiente permite e encoraja”. O depoimento de Rilson traz alerta para uma outra discussão urbanística: a exclusão das crianças dos espaços urbanos e das vias públicas e a ajuda desses territórios nos processos de parentalidade.

MAIS ESPAÇO PARA SOCIALIZAR

O boulevard da Rio Branco tem um total de 24 metros de largura e 269 metros de comprimento desde a requalificação. Inaugurada em 2017 pela Prefeitura do Recife e o Governo do Estado, a obra consiste em uma série de investimentos para estimular o uso de quem circula a pé. Nesta avenida, a circulação de carros é proibida de domingo a domingo, foram instalados bancos, quiosques, iluminação e arborização e, nas vias ao redor, foi ampliado o sistema da Zona 30, com limite à velocidade dos veículos. Resultado: as pessoas ganharam espaço para socializar. Dá para ver o passeio de quem faz intervalo entre trabalhos, quem quer tomar um drink no fim do dia, pai ensinando crianças a andar de bicicleta sem o apoio das rodinhas e jovens fazendo dancinha para as redes sociais.

Rilson Francisco (ele adverte que prefere não ser lembrado pela cacofonia na pronúncia, lembrando o Rio São Francisco) tem testemunho dos mais relevantes dentro dessa espécie de laboratório do quadrilátero do Bairro do Recife em favor da caminhabilidade e uso dos espaços. Como o comerciante define, ele defende o espaço dos “bípedes”. “Hoje em dia a gente fala do ser humano como um invasor do espaço dos carros, o que mostra uma lógica invertida”.

Uso da bicicleta como transporte vem sendo estimulado no Recife – Crédito: Andréa Rêgo Barros/PCR

“Aqui é minha casa”, diz ele. Antes, seu transporte era o ônibus. Há um tempo, prefere a bicicleta para se locomover de casa, em Olinda, até o Bairro do Recife. A economia de tempo no trânsito Olinda-Recife e Recife-Olinda tem valido a pena. Ao final da semana, é ganho de horas de qualidade de vida. Ressente-se por infraestrutura extra que atenda a quem fizer esta opção, como a instalação de guardas-volumes e a instalação de banheiros com duchas. “Seria muito bom”.

Na capital pernambucana, o Bairro do Recife está mais próximo de ser o protótipo do modelo de “Cidades de 15 minutos”, embrião da caminhabilidade, serviços, lazer e com estações de ônibus e metrô mais próximos, além de estar no holofote de gestores e da comunidade civil organizada, como o Porto Digital.

O conceito de “Cidade de 15 minutos” prevê a aproximação de destinos, com as pessoas suprindo suas necessidades diárias ou semanais de rotina em uma curta distância, numa caminhada de 15 minutos, como ocorre no Bairro do Recife

Em Paris, está em curso um modelo que vem se tornando referência de política pública de caminhabilidade. A prefeita da cidade, Anne Hidalgo, adotou o conceito de “Cidade de 15 minutos”, que prevê a aproximação de destinos. Neste modelo, as pessoas conseguem suprir suas necessidades diárias ou semanais de rotina em uma curta distância, numa caminhada de 15 minutos ou com a ajuda de uma bicicleta, usando o meio de transporte mais disseminado universalmente em razão da fácil acessibilidade. O conceito foi criado em 2016 pelo cientista franco-colombiano Carlos Moreno, professor da Universidade Paris 1 Panthéon de Sorbonne e que, hoje, trabalha em parceria com a prefeitura de lá.

A caminhabilidade para trechos curtos, a pé ou de bicicleta, é aquela em que o cidadão deixa o carro e usa outros modais para ir almoçar no intervalo do trabalho (como acontece no Bairro do Recife), para ir à padaria, levar os filhos na escola ou fazer compras em um centro comercial próximo. Dentro do princípio da “Cidade de 15 minutos”, as conexões entre as pessoas são facilitadas e seguras. O conceito de bairro de 15 minutos prevê lugares compactos, com variedade de moradias, escolas, creches, serviços e espaços verdes. “A criatividade da cidade não depende dos carros. Isso é coisa do século 20. Estamos no século 21. Carro é coisa do século 20”, afirma Anne Hidalgo.

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo – Crédito: Inès Dieleman

Anne ganhou projeção com a defesa da implementação de uma série de políticas e investimentos. A ideia não é nova. Surgiu na década de 1960, ganhando efervescência novamente no período de auge da pandemia da Covid-19, em 2020 e 2021, quando, por força das medidas sanitárias, recomendava-se ou exigia-se que as pessoas se deslocassem apenas no entorno da sua moradia.

Sobre o território, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é claro. A prioridade na cidade é do pedestre e do ciclista. As palavras “pedestre” e “os pedestres” são citadas 39 vezes no CTB. Na contramão dos automóveis e da demanda por vias e estacionamentos públicos e privados, outras cidades no mundo estão fazendo valer esta prioridade.

“Aqui as escolas públicas têm, de uma forma geral, um sistema de zoneamento. Dependendo da rua onde você mora, você está sendo alocado para a escola ‘x’, que normalmente fica próxima da sua casa. É tão bonito ver de manhã um monte de criança indo para a escola andando ou de bicicleta – às vezes, na companhia dos pais, especialmente os mais novos, mas vemos muitas indo sozinhas ou com amiguinhos. Com isso, a vida da gente acaba ficando bem local”.

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No segundo dia de publicação da série de reportagens #RECIFEPRAGENTE , o Jornal Digital aborda a cultura da carrocracia e os seus efeitos

Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados.

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