No segundo dia da série de reportagens #RECIFEPRAGENTE, o Jornal Digital mostra que grande maioria das pessoas da cidade percorre percursos curtos que, com boa estrutura, poderiam ser feitos sem o uso de veículos

Links abaixo para os dois primeiros textos da série:

LABORATÓRIO PARA UM NOVO MODELO URBANO

UMA CIDADE AO ALCANCE DOS PÉS

A base do projeto “Cidade de 15 minutos” prevê reduzir e até proibir o uso de carros e vagas de estacionamento em alguns trechos ou bairros de uma cidade, fortalecer as comunidades, aproximar as pessoas dos seus locais de trabalhos com bairros mistos e conectá-las. Não se trata de criminalizar o uso do carro, apenas a propositiva ideia de cobrar mudanças urbanísticas de médio e longo prazos e que as pessoas cogitem um modelo de vida diferente, onde o automóvel não seja o “centro do universo“. 

Em outros países, o processo de discussão desse modelo está acelerado. Em Lisboa, por exemplo, acaba de ser promovida mais uma plenária do Conselho de Cidadãos como contribuição ao governo público. Algumas, usam o urbanismo tático, com a experimentação dos projetos por dois ou seis meses para avaliação da área. Para, só depois, concluir se piorou ou melhorou e se deve continuar.

O melhor exemplo de caminhabilidade que se tem no Recife está no Recife Antigo mais central e urbano: nela, não transita veículo motorizado porque a voz abafada de uma maioria ganhou vez. É do pedestre e do ciclista esta voz, quase sempre minimizada diante do barulho de uma minoria usuária de veículos. No Recife, a Avenida Rio Branco derrotou o conceito de que carros, motos e ônibus devem ter preferência no trânsito.

O caminhar pela Rio Branco mostra uma relevante apropriação do espaço urbano. Cliente de Rilson Francisco, da banca de jornais e revistas, o funcionário público Reginaldo Lopes, 51 anos, redescobriu o prazer do passeio pós-almoço. Também aproveitando um novo estilo de vida, numa dessas conversas frente à banca, propagou sua experiência de trocar o modal, como é chamada a forma de utilização de transporte. Substituiu o veículo, que circulava com uma pessoa a bordo, pelo deslocamento por meio de transporte público – no caso dele, um ônibus opcional e confortável.

Trabalhadores das mais de 360 empresas do parque tecnológico aproveitam o ambiente para trocar experiências – Foto: PC Pereira

Um colega de trabalho colocou o carro na oficina, e por esse motivo, veio de ônibus. Começou a falar que era tranquilo e que valia a pena. Com isso, testei e vi que realmente é uma alternativa viável”. Reginaldo descobriu um aplicativo que mostra o horário previsto para a chegada do ônibus na parada e ficou tudo mais fácil. Apesar de já ter perdido alguns ônibus pela falta ou falha na localização em tempo real, acredita ainda ser uma boa alternativa para não dirigir, defende ele.

São muitos os ganhos coletivos de uma cidade planejada Link do box e que pensa no ser humano. A caminhada e a bicicleta estão de mãos dadas nesse projeto de espaços . Pelo menos 16 cidades no mundo estão adaptando o “Cidade de 15 minutos”. Muitas delas fazem parte da rede C40, que reúne grandes cidades do mundo comprometidas com a luta contra as mudanças climáticas. Algumas começam por um bairro; outras pela cidade inteira. Aqui você pode conhecer os planos de Ottawa (Canadá), Xangai (China) e Portugal. Em Melbourne , usa-se 20 minutos.

Caminhar pela Avenida Rio Branco mostra uma relevante apropriação do espaço urbano – Foto: PC Pereira

A caminhabilidade, a saudabilidade e a sustentabilidade antecedem a mobilidade por bicicleta, alerta Cláudio Marinho. Na prática, as bikes e as ciclovias fazem parte do conceito de caminhabilidade. Nela, antes de qualquer premissa, está a lógica de que é preciso ter menos carros na cidade, ao passo que se ofereça mais espaços para ciclistas, pedestres, idosos, pessoas com necessidades especiais e espaços para convívio.

Cláudio Marinho, hoje consultor da Porto Marinho e à frente de projetos em centros históricos como os de Belém e do Rio de Janeiro, já falava desse tema há mais de dez anos. Agora, retoma a questão, com a globalização do projeto de Paris e com a busca de governos estaduais no sentido de revitalizar centros históricos, reintegrando-os à cidade. Tem testado o que chama de “Cidade de 5 minutos”, versão mais encurtada ainda que a francesa.

Cláudio Marinho é consultor e cuida de projetos em centros históricos de Belém e do Rio de Janeiro – Foto: Acervo/Porto Digital

O Recife sempre surge como exemplo: no caso dos trabalhadores das mais de 360 empresas do Porto Digital, é possível chegar a mais de 80% delas em menos de cinco minutos. “Um lugar com a possibilidade do ‘por acaso’, do encontro fortuito e que gera conversações”, como definem em comum acordo Cláudio Marinho e o cientista-chefe da TDS.company, professor da CESAR School, presidente do Conselho do Porto Digital e empreendedor, Silvio Meira.

“É uma sociabilidade nova em um espaço público, em que há interações na escala humana e texturas. E aí é simbólico e literal porque a textura de prédios com passado é bem diferente da textura de 40 pavimentos do bairro de Boa Viagem. Você tem contato com a paisagem, com a rua. Faz uma apropriação afetiva, histórica. No nosso caso do Recife, leia-se: camadas de história, afinal pisamos em um lugar onde outros pisaram há mais de quatro séculos”, diz Cláudio.

O conceito do professor Carlos Moreno e da valorização da caminhabilidade, tem a premissa de um “design urbano centrado no ser humano”. Nas necessidades dos seres humanos, com eles sempre no primeiro plano.

Nessa região do Recife, a história está incrustada desde o solo. Em 2022, trabalhadores da Prefeitura do Recife descobriram um tesouro arqueológico, provavelmente do Século XVI, da época das primeiras ocupações do povoamento da urbe. Mais de 100 ossadas foram encontradas; acredita-se que são resquícios de humanos em uma construção erguida pelos portugueses para resistir à chegada dos holandeses, no Século XVII.

No Sítio do Pilar – como foi batizado o terreno que fica na comunidade do Pilar – foram encontradas ossadas dos séculos 16 e 17

UMA NOVA CULTURA, LIVRE DE CARROS

A favor dessa transformadora ventania urbana e cultural, que está impactando o Bairro do Recife de forma mais abrangente, surge o debate a respeito da ampliação das políticas públicas e sobre o papel do cidadão para este basta à “carrocracia”, a supremacia dos carros nas cidades, como definiu Marcelo de Troi, doutor e mestre em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, numa expressão que tem sido popularizada no Brasil quando se fala de mobilidade urbana.

O basta à carrocracia está associado a uma nova cultura, livre de carros. Mais saudável, menos poluidora, menos estressante. Longe de querer criminalizar os automóveis, mas dar-lhes aos automóveis o justo tratamento, com vias apropriadas e exclusivas, resgatando ou ampliando o espaço de pedestres e ciclistas. E, em parte, essa cultura depende da implementação da justiça na representação da população nos meios de comunicação da verdadeira maioria.

Veja vídeo produzido pela Ameciclo sobre carrocracia:

Claro, diante do novo, há sempre o medo, conforme já se provou no Recife e outras partes do mundo.

“A carrocracia é defendida por uma minoria barulhenta porque ela tem muito mais espaço e voz. Primeiro, porque realmente é um pessoal que tem a maior vantagem financeira; depois, pela comunicação, pela forma e como ela prioriza a visão do usuário do veículo”, destaca Daniel Valença, articulador da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo). E exemplifica: toda vez que se faz uma ciclovia para ciclistas ou se cria lugar sem automóveis e que servem aos pedestres, as reclamações dos motoristas de carros privados parecem reverberar mais, ganham mais destaque, dando a impressão distorcida de que é uma maioria, alerta ele. “Às vezes, o incômodo relatado por quem anda de carro parece mais importante que a conquista da ciclovia”, frisa ele. 

Quando há conquistas relevantes para o ativismo dos ciclistas e caminhantes, Daniel comemora: “Em 2013, nas reuniões que tivemos com a prefeitura, já pedíamos a zona 30 de velocidade. Então, olhar para aquela área (do Bairro do Recife) é ver uma conquista da gente (cicilistas) também. Mas, olhe, faz dez anos isso. O que precisa agora é acelerar essa redução de velocidade em outros pontos, assim como o que chamamos de acabamento do trânsito”, explica Valença.

Links abaixo para a continuação da série: 

MINORIA BARULHENTA; MAIORIA SILENCIADA

DE UMA “LINGUETA DE TERRA” A UM CENTRO URBANO

Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados

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