Em cerca de 24 anos, a presença dos holandeses no Recife rendeu vários títulos de “primeiro das Américas” para a cidade, que foi a capital administrativa do Brasil neerlandês.

Isso serve para a primeira sinagoga (Sinagoga Kahal Zur Israel, na Rua do Bom Jesus), a primeira ponte, o primeiro observatório astronômico ou o primeiro jardim zoobotânico – esses dois últimos ficavam no Palácio de Friburgo, residência oficial de Maurício de Nassau.

Recife teve a “primeira cervejaria das Américas”: a La Fontaine
Palácio de Friburgo em detalhe de gravura de Frans Post, em 1643

Curiosamente, a história da cerveja no Brasil também começa com esse tipo de título. Até onde se sabe, o Recife teve a “primeira cervejaria das Américas”: a La Fontaine.

A partir de 1637, Nassau trouxe à capital do Brasil Holândes diversos intelectuais, cientistas, astrônomos, médicos, artistas e… um mestre cervejeiro: Dirck Dicx. Esse foi um cervejeiro da “Era de Ouro Holandesa” (1588-1672) que se mudou para o Brasil junto com a Companhia das Índias Ocidentais.

De acordo com o livro “Haarlem Jaarboek”, espécie de anuário que registrou personagens nascidos na cidade de Haarlem, Dirck Dicx era filho de um prefeito que foi responsável por uma cervejaria chamada Het Scheepje. Ele também se tornou cervejeiro, responsável pela Halve Maen, em Haarlem.

Dicx também serviu à guarda cívica (que também podemos chamar de “milícia”) St George, que chegou a ser pintada por Frans Hals – o quadro, de 1639, está até hoje presente no Frans Hals Museum, em Haarlem. Ele aparece como penúltimo do lado direito no grupo.

Recife teve a “primeira cervejaria das Américas”: a La Fontaine
Quadro ‘The Officers of the St George Militia Company’, (1639 – Frans Hals), com o cervejeiro Dirck Dicx sendo o penúltimo da direita – Crédito: Reprodução

Dirck Dicx veio para o Recife com toda a parafernália para a cervejaria, que ficou em uma residência nomeada de “La Fontaine” (“A Fonte”, em francês), localizada em uma região que atualmente corresponde ao bairro das Graças, na Zona Norte. A inauguração teria ocorrido em 1641.

Assim, o território passou a ter a distribuição de uma cerveja encorpada, feita com cevada e adição de açúcar – produto essencial ao ciclo econômico, e que motivou essa invasão no Nordeste.

Muitos dos hábitos e cultura dos holandeses eram vistos como “alienígenas” em uma terra que vinha vivendo uma colonização lusitana. Isso ocorreu em relação à cerveja. Após a expulsão, em 1654, a bebida não se firmou no gosto popular. Inclusive, não se sabe qual o destino de Dirck Dicx após 1650.

Recife teve a “primeira cervejaria das Américas”: a La Fontaine
Gravura do século 17 mostra como era a produção de cerveja na Europa

A cerveja saiu de cena no Brasil colônia pois não era uma iguaria dos portugueses, que se interessavam muito mais em vender o vinho lusitano. Ainda havia a aguardente, que já havia caído no gosto do povo e que era boa e barata em Pernambuco, por conta dos muitos engenhos de açúcar.

Apesar da existência do contrabando, a cerveja só iria voltar de fato após a abertura dos portos, em 1808, com a vinda da Família Real. Como Dom João IV firmou diversos contratos com a Inglaterra, as cervejas inglesas começaram a desembarcar pelos portos brasileiros, concorrendo com a cachaça e o vinho.

Cerveja pernambucana

Ao longo do século 19, começam a crescer as fábricas de cerveja de imigrantes alemães, com adoção de receitas mais próximas do paladar brasileiro, mais claras e suaves. 

Registros apontam que o Recife já possuía duas fábricas de cerveja em 1866: uma dos franceses Chaix & Gassier e a outra do prussiano Henry Joseph Leiden, o primeiro introdutor da bebida no Brasil e ex-produtor e proprietário da Imperial Fábrica de Cerveja, no Rio de Janeiro.

Recife teve a “primeira cervejaria das Américas”: a La Fontaine
Anúncio da Chaix & Gassler no Diario de Pernambuco em 3 de setembro de 1866

Em 3 de setembro de 1866, é publicado o primeiro anúncio da Chaix & Gassler no ‘Diário de Pernambuco”:

“Chaix & Gassler, recentemente estabelecidos com fábrica de cerveja nesta cidade à rua das Florentina n. 20, convidam ao respeitável público para que se afreguezem e comprem da cerveja fabricada em seu estabelecimento, cuja qualidade superior nada tem a desejar, tanto no aroma e transparência como no sabor, acrescentando ainda que por ser fabricada no país não tem álcool como acontece com a que vem do estrangeiro. Os senhores que a quiserem comprar dirijam-se ao indicado estabelecimento d’onde sairão contentes não só pela qualidade superior da cerveja, como também pelo grande cômodo de preço”.

As marcas também aparecem em uma lista de itens da Exposição Provincial, que reunia o que havia de melhor no Estado, no mesmo jornal. “A cerveja da província não pode rivalizar ainda com a estrangeira, mas a sua qualidade já deixa um pouco a desejar, atendendo-se que é fabricada em um país próximo à linha (do Equador); entretanto, os seus fabricantes esperam dar-lhes todas as condições de superioridade”, registrava a comissão.

holandês criou no recife a primeira cervejaria das américas
Anúncio da Cerveja Imperial, de Henry Joseph Leiden, no Diario de Pernambuco em 1866

O artigo foi reproduzido no primeiro volume do livro “O Diario de Pernambuco e a história social do Nordeste (1840-1889)”, organizado por José Antonio Gonsalves de Mello e lançado em 1975, no aniversário de 150 anos de fundação do jornal.

Em 21 de fevereiro de 1873, mais um relatório sobre cerveja foi publicado, desta vez pela Comissão Diretora da Exposição Provincial realizada entre os dias 20 e 22 de outubro de 1872, que foi visitada por 28.948 pessoas.

Desta vez, o empreendimento de Leiden foi citado, já com o nome de Fábrica de Cerveja Imperial, estabelecida na Rua do Sebo (atual Barão de São Borja), número 35. Produzia dois tipos de cerveja (branca e preta), e mais limonada e água gasosa, além de bitter aromático.

Hoje, Pernambuco continua a sua relação cultural e econômica com a bebida, sediando fábricas da Ambev, Brasil Kirin, Itaipava e Ibbeb. O Estado também passou a produzir diversas cervejas artesanais nos últimos anos, com iniciativas como Associação Pernambucana das Cervejarias Artesanais (Apercerva). São 25 rótulos e 13 fábricas que produzem mais de 200 mil litros de cerveja por mês.

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Segundo a Associação Pernambucana das Cervejarias Artesanais, são 25 rótulos e 13 fábricas no Estado – Crédito: Divulgação

Algumas dessas marcas locais podem ser encontradas (e consumidas) na Loja de Bebidas de Pernambuco, espaço localizado dentro do Armazém 11, no Marco Zero. Criado pela Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe), a loja fica ao Centro de Artesanato e da Loja de Moda Autoral de Pernambuco, reforçando o apoio da gestão estadual à economia criativa.

Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio

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