A adoção de carros elétricos no Brasil não engatou “nem a segunda marcha”. Dados do último mês de julho da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) indicam que dos 225,6 mil automóveis licenciados no período, os elétricos representavam menos de 0,5% do mercado.
Em comparação, nos EUA, os elétricos já representam quase 8% das vendas este ano, segundo a GlobalData. Nas contas da Agência Internacional de Energia, 14% de todos os automóveis novos vendidos em 2022 foram elétricos, com a China respondendo por cerca de 60% dessas vendas. Por lá, quase um a cada quatro carros vendidos eram movidos a bateria. Se na estimativa da Bright Consulting, até 2030, a média global de adoção de veículos a bateria é de 37%, a expectativa do Brasil é de 7% do mercado.
E esse gargalo atende pelo nome de “preço”. Como não há nenhuma fábrica no País (mesmo de componentes, como a bateria, por exemplo), todos os elétricos têm que ser importados. E mesmo com incentivos e isenções, o modelo mais em conta não custa menos de R$ 145 mil. Porém, temos uma particularidade no Brasil, um modelo de carro que já tem uma entrada forte na população há pelo menos 20 anos e conta com uma eficiência, do ponto de vista de emissões de CO², no mínimo comparável aos modelos elétricos atuais: o bom e velho etanol.
Antes de nos aprofundarmos no tema, é bom fazer um disclaimer – que não tem novidade nenhuma em si, mas temos sempre que ter em mente: há muitos interesses em jogo, de players gigantes do mercado. E cada um puxa a sardinha para si, inclusive financiando estudos que apoiem sua visão para essa transição energética. É preciso deixar isso claro de cara, porque vamos começar com um desses estudos, feito por um desses atores.
A Stellantis, dona das marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, mediu a emissão de gás carbônico, em tempo real, de carros com a mesma situação de rodagem em quatro situações: com gasolina tipo C (E27); 100% elétrico abastecido na matriz energética brasileira, 100% elétrico abastecido na matriz energética europeia e abastecido com etanol (E100). Essa diferenciação é importante, porque o teste mediu a eficiência levando em conta todo o ciclo de vida do combustível. É a chamada análise “do poço ao volante”, o famoso “well to wheel”, ou seja, da extração do petróleo (ou produção da energia elétrica) até o consumidor final.
E o resultado foi esse:
- Gasolina (E27): 252,1 gramas de CO2 a cada quilômetro rodado;
- 100% elétrico com energia europeia: 126 g/km;
- Etanol (E100): 107,2 g/km;
- 100% elétrico com energia brasileira: 89,2 g/km.
Ou seja, carros movidos a etanol são menos nocivos ao meio ambiente do que modelos que usam fontes de energia elétrica disponíveis na Europa, com essa emissão chegando a ser 60% menor. E no Brasil, o uso de elétricos é ainda mais sustentável em virtude da nossa matriz energética, em que se destacam além dos biocombustíveis, a energia elétrica gerada por meios renováveis (principalmente hidrelétricas, mas também células de energia solar e parques eólicos) – uma vantagem comparativa do país que já poupou cerca de 35 milhões de toneladas de emissões equivalentes de CO² no ano passado, de acordo com um estudo da Fundação Getulio Vargas.
Além disso, o dióxido de carbono liberado por um veículo quando o etanol é queimado é compensado pelo dióxido de carbono capturado quando as culturas de matéria-prima são cultivadas para produzir etanol. Isso difere da gasolina e do diesel, que são refinados a partir do petróleo extraído da terra. Com base na análise do ciclo de vida, as emissões de gases de efeito estufa são reduzidas, em média, em 40% com o etanol à base de milho e variam entre 88% e 108% se forem utilizadas matérias-primas celulósicas, dependendo do tipo de matéria-prima.
Aí o disclaimer fica importante, porque a Stellantis tem um plano para investir na produção de carros movidos à etanol no Brasil. Em entrevista, o executivo da montadora, Carlos Tavares, criticou abertamente a adoção de carros elétricos no país e enfatizou a preferência pela tecnologia flex e o etanol como solução de descarbonização no transporte.
“Minha avaliação honesta é que não, eles [os brasileiros] não precisam [de veículos elétricos] porque vocês tem uma solução muito boa para o planeta. Também há o fato de o Brasil ter grandes terras onde a produção de etanol não vai competir com a de alimentos, o que também é muito bom para o país. É uma tecnologia muito acessível e já teve investimento necessário. Então, por que você desperdiçaria os recursos da sociedade em algo que não é melhor para o planeta?”, afirmou o português.
A adoção mais lenta de veículos elétricos no Brasil tem muito a ver com essa visão combinada de fabricantes de automóveis, indústria de produção de biocombustível e governos. Este apoio inclui regulamentações pró-etanol, impostos mais baixos em comparação com a gasolina e um programa federal de crédito de carbono que beneficia a produção de etanol. Ao mesmo tempo, não há política de desenvolvimento de elétricos e investimento em infraestrutura de carregamento ou na produção de baterias.
O atual governo do presidente Lula tenta equilibrar ambas as tecnologias, atraindo fabricantes chineses de veículos elétricos e ao mesmo tempo mantendo os incentivos ao etanol. Da mesma forma, as montadoras operam com estratégias diferentes para cada região. A já citada Stellantis, por exemplo, planeja vender apenas veículos elétricos na Europa a partir de 2030 e chegar a 50% nos Estados Unidos. Já para o Brasil, ou mesmo para a América do Sul, não há uma porcentagem estabelecida.
E já existem estudos que questionam a sustentabilidade do etanol no longo prazo. Uma pesquisa publicada no ano passado na Proceedings of the National Academy of Sciences observou que um crescimento na demanda por biocombustíveis pode levar a um aumento na área cultivável de milho ou cana-de-açúcar, o que pode acarretar em uma maior emissões de gases do efeito estufa e a exacerbação de outros problemas ambientais, incluindo má qualidade da água e erosão do solo.
Um estudo intitulado “Difusão de veículos elétricos no Brasil na perspectiva dos stakeholders”, feito pelo pesquisador Evaldo Costa, do Instituto Universitário de Lisboa, e publicado na Nature, aponta que a indústria no Brasil vê os carros elétricos como uma tecnologia complementar ao etanol, e não como um concorrente direto, e acredita que os incentivos governamentais poderiam levar os VEs a capturar até 20% da participação de mercado no Brasil até 2030. A pesquisa também sugere que a expansão do uso de elétricos em frotas governamentais e de empresas privadas poderia ser uma estratégia viável para adoção no mercado de massa no Brasil.
Uma outra pesquisa, desenvolvida na Unicamp, USP e IPEN, propõe uma solução ainda mais inovadora: veículos elétricos movidos a etanol. A ideia é criar uma célula a combustível de etanol que utiliza o hidrogênio do etanol (C2H6O) para produzir energia de forma semelhante ao que os veículos movidos a hidrogênio que já existem fazem, ao gerar eletricidade em células de combustível, emitindo apenas vapor d’água como resíduo.
No projeto, um catalisador decompõe o etanol em hidrogênio, que é então processado em uma célula a combustível de óxido sólido operando entre 600°C e 800°C, transformando o hidrogênio em eletricidade, e o armazenando numa bateria recarregável para alimentar o veículo. Ao contrário dos modelos tradicionais que requerem hidrogênio puro, este sistema pode utilizar moléculas de etanol, incluindo carbono. Esse sistema oferece maior eficiência teórica, até 20% mais do que as células de combustível tradicionais, e os protótipos demonstraram uma quilometragem impressionante com etanol.
Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF
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