Em um mundo onde a inovação tecnológica e a busca incessante por eficiência dominam, um fenômeno curioso tem emergido: a “enshittification”, algo como “esmerdalhamento”, na língua de Camões. Este termo, que pode soar chulo à primeira vista, refere-se à tendência de produtos e serviços que degradam sua qualidade ao longo do tempo, mesmo quando a tecnologia e os recursos disponíveis deveriam sugerir o contrário.

A origem do termo remonta críticas sobre a direção que muitas empresas estão tomando. Foi criado pelo autor de ficção científica Cory Doctorow para descrever o processo pelo qual uma plataforma digital que já é promissora se deteriora com o tempo, geralmente em detrimento de seus usuários.

No início, as plataformas priorizam seus usuários, mas abandonam o conceito em nome dos lucros

Cory Doctorow resumiu o ciclo de vida dessas plataformas em três etapas:

  1. Fase centrada no usuário: Inicialmente, as plataformas priorizam seus usuários, oferecendo valor a eles e uma experiência positiva. Esta é a era de ouro em que as plataformas operam com perdas, subsidiando os benefícios do usuário para atrair uma grande base de usuários.
  2. Fase centrada nos negócios: À medida que a plataforma cresce, começa a priorizar seus clientes comerciais, geralmente à custa da experiência do usuário. Esta fase vê a introdução de anúncios, alterações algorítmicas e outras estratégias de monetização.
  3. Fase egocêntrica: Na fase final, as plataformas priorizam seus próprios lucros, geralmente explorando usuários e clientes de negócios. É aqui que a qualidade da plataforma se deteriora rapidamente, levando ao seu eventual declínio ou morte. Em vez de se concentrarem em melhorar a qualidade ou a durabilidade de seus produtos, muitas optam por cortar custos, muitas vezes à custa da qualidade.

 Mas por que isso está acontecendo?

A Doutrina Friedman e a obsessão pelo lucro

Um dos principais impulsionadores da “enshittification” pode ser rastreado até a Doutrina Friedman, que sugere que a única responsabilidade social das empresas é aumentar seus lucros. Esta mentalidade levou muitas empresas a priorizar os lucros acima de tudo, incluindo a qualidade dos produtos e a satisfação do cliente.

Nos estágios iniciais de uma plataforma, o foco está no crescimento de usuários, usando seu capital para subsidiar benefícios

Nos estágios iniciais de uma plataforma, o foco está no alcance de mais gente. As empresas, especialmente as apoiadas pelo capital de risco, geralmente priorizam os números de pessoas usuárias sobre os lucros. Eles usam seu capital para subsidiar os benefícios do usuário, tornando a plataforma atraente. A Amazon é um excelente exemplo disso: operando com perdas por anos, subsidiando o custo dos produtos e o envio e priorizando os resultados de pesquisa centrados no usuário.

O TikTok é outro exemplo: inicialmente, seu algoritmo foi elogiado por sua estranha capacidade de sugerir o que os usuários de conteúdo gostariam. No entanto, à medida que a plataforma crescia, também aumentavam suas ambições. Ferramentas internas foram usadas para aumentar artificialmente o alcance de certos vídeos, enganando os criadores e os usuários. Essa manipulação, destinada a atrair e reter criadores, é um sinal claro da mudança da plataforma da centrada no usuário para a egocêntrica.

E tem mais exemplos por aí, como resultados de pesquisa lotados de anúncios, criadores de conteúdo que não conseguem mais alcançar seu público, a criação de novas taxas (sim, Netflix, estamos olhando para você e sua taxa extra), e por aí vai.

A ilusão da eficiência

Outro fator contribuinte é a crescente dependência de algoritmos e inteligência artificial. Embora essas ferramentas possam oferecer meios incríveis, elas também podem ser mal utilizadas. Em um mundo dominado por algoritmos e IA, onde a eficiência é muitas vezes medida em milissegundos e centavos, a pressão para otimizar os lucros levou a decisões que favorecem a quantidade sobre a qualidade. Produtos são projetados para serem obsoletos, serviços são diluídos e a experiência do cliente é frequentemente sacrificada.

O algoritmo do TikTok era elogiado por sugerir o conteúdo preferido dos usuários, mas já não entrega como antes

Em alguns casos, as empresas confiam cegamente em algoritmos para tomar decisões, sem considerar o impacto humano ou a qualidade intrínseca. Para Doctorow, isso não apenas degrada a experiência do usuário, mas também representa uma ameaça à própria essência da Internet. 

As plataformas que antes priorizavam o conteúdo e as conexões do usuário se tornam máquinas de ganhar dinheiro, empurrando suas próprias agendas e produtos. Essa mudança geralmente leva a uma perda de confiança, à medida que a pessoa usuária se sente traída pelas plataformas que antes amava.

De fora, a pressão para entregar retornos aos investidores eventualmente chega, e as empresas são vendidas ou tornam-se públicas, expondo-as às demandas de Wall Street. Uma vez no mercado financeiro, a ênfase muda para o crescimento trimestral de receita e lucro. O foco de curto prazo de Wall Street geralmente entra em conflito com a visão de longo prazo de uma empresa, levando a conflitos em prioridades. 

A pressão de Wall Street geralmente empurra as empresas para a segunda etapa da “enshittification”, no qual elas exploram os usuários para atender aos clientes de negócios. Essa exploração pode alienar os usuários, mas muitas empresas sobrevivem a essa fase devido à inércia ou à falta de forte concorrência.

As plataformas que mergulham de vez na “enshittification” empregam táticas para reter usuários e dificultar a saída

Além disso, à medida que as plataformas mergulham de vez na “enshittification”, elas geralmente empregam táticas para reter usuários, dificultando a partida. Seja por meio de conteúdo exclusivo, gerenciamento de direitos digitais ou simplesmente o efeito de rede de ter todos que você conhece em uma única plataforma, os usuários se sentem presos.

O Futuro da Qualidade

A boa notícia é que a “enshittification” não é inevitável. Especialistas como o próprio Doctorow e Mike Masnick, da Techdirt, sugerem a interoperabilidade, uma experiência semelhante a portabilidade que ocorre com telefônicas e bancos. Isso permitiria que os usuários trocassem de plataformas sem perder suas comunidades ou conteúdos.

Tanto é que já existem diversas barreiras à interoperabilidade. Plataformas como o X (ex-Twitter), restringem aplicativos de terceiros e limitam o acesso da API, dificultam a partida dos usuários, permitindo que a plataforma as explore ainda mais. No entanto, essa estratégia tem seus limites.

Além disso, as plataformas devem priorizar as comunidades que constroem, com foco na sustentabilidade de longo prazo, em vez de lucros de curto prazo. A “enshittification” é tipo aqueles contos de fada, mas com uma lição de moral no final (ou como os episódios do He-Man), mas para as plataformas digitais. Embora a tentação de priorizar os lucros sobre os usuários seja forte, é uma estratégia que geralmente leva à “morte” de uma rede. 

Como usuários, é essencial reconhecer os sinais de consolação e defender uma Internet mais aberta e centrada no usuário. Afinal, o mundo digital deve servir seus usuários, não o contrário.

Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF

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