*PC Pereira

O filme Retratos Fantasmas não é apenas uma carta de amor ao Recife e aos cinemas de rua. Claro que ele é isso também mas, para além, é um belo protesto contra a tiktokzação cultural (outrora indústria cultural); uma lembrança da ocupação cultural do centro, hábito cada vez mais raro e enlatado na era dos streamings e das inteligências artificiais. 

O idealizador (e também ator) do filme, Kleber Mendonça Filho, começa a jornada partindo de dentro do seu eu interior, sua casa, seu bairro, e indo literalmente pra fora (tal qual sugere o título do curta de Kátia Mesel, Recife de Dentro pra Fora, mostrado no longa). 

Um excepcional documento imagético do Recife, com imagens históricas que abrangem um período de mais de cem anos, um híbrido entre documentário e ficção (essencialmente documentário, é verdade – a ficção aparece mais discreta, como um toque de classe do diretor).

Retratos Fantasmas

O apartamento no bairro de Setúbal onde Kleber rodou seus primeiros projetos de filmes, a vizinhança tão presente em O Som ao Redor (outro longa dele), através de arquivos extremamente pessoais: ali o amor pelo cinema é parido e começa a tomar seu rumo em direção à eternidade. 

Os cinemas de rua do centro do Recife – em seus tempos áureos – com seus projecionistas carismáticos, exibindo filmes emblemáticos como O Iluminado. Sediando eventos da alta sociedade pernambucana e escancarando suas ligações com os interesses por trás das empresas donas das salas de cinema. A decadência atual do mesmo centro, que vai dando espaço a igrejas e comércios, incluindo centenas de unidades do que talvez seja o estabelecimento comercial mais rentável da história da humanidade: as farmácias (talvez o segundo mais rentável pois em primeiro possivelmente estão… as igrejas). Três atos retratando os fantasmas (desculpem) de uma época ímpar onde a cultura cinematográfica era algo presente durante os dias e as noites recifenses.

Retratos Fantasmas

Destaco aqui três pontos fortíssimos do filme: a curadoria de material histórico, a edição e a trilha sonora. Esse último aspecto consegue caminhar bem entre os momentos de empolgação quando o roteiro pede, mas também mergulha na densidade fantasmagórica que vai acometendo o futuro com um tom mais cabuloso.

Ouça a trilha:

O filme consegue ser apaixonado, através da narração e depoimento de quem fazia o cinema acontecer naquela época, e macabro, trazendo os fantasmas dos cinemas antigos de volta para os cinemas do presente, usando a tela como portal interdimensional. Esses momentos mais densos são o ponto de ancoragem da obra – para onde ele sempre volta – mas prontamente quebrados por flashes de comédia.

Essas quebras cômicas soam como uma forma de olhar positivamente para o futuro. Apesar do fim daquela época esplendorosa dos cinemas de ruas, isso não significa que novas eras áureas não possam voltar a acontecer. Kléber consegue usar muito bem o artifício da comédia em um filme supostamente triste.

Retratos Fantasmas

Fiquei com a impressão que o diretor do filme percebeu, durante seus trabalhos de faculdade, o destino inevitável que aguardavam aqueles cinemas e começou então sua jornada de registros documentais, registros que envelheceram como vinho dentro da adega digital dos discos rígidos. 

O trabalho de curadoria histórica que Kleber traz em Retratos Fantasmas, que durou cerca de sete anos, é a espinha dorsal do filme, o núcleo que faz ele ter tanta força cinematográfica. Os arquivos das famílias recifenses, materiais pessoais do próprio Kleber, arquivos públicos e principalmente cinematecas foram as minas de ouro de onde o diretor conseguiu extrair a matéria bruta do filme.

A edição feita por Matheus Farias complementa magistralmente a dramaticidade da obra, ficando evidente nos momentos em que aparecem os arquivos fotográficos, onde as imagens vão sendo reveladas gradualmente de acordo com a narração, utilizando zoom como artifícios de condução. Fantástico trabalho de montagem.

Homenagens, histórias e registros das mudanças da cidade, algumas radicais e outras sutis mas todas relevantes. Há quem se incomode com tamanha pessoalidade nos relatos íntimos entre Kleber e a cidade, mas há também quem diga que a arte só é arte justamente por ser algo pessoal.

Kleber_Mendonça_FIlho
O filme do diretor Kleber Mendonça Filho será o representante brasileiro no Oscar deste ano

Retratos Fantasmas é além de tudo um grito de socorro, uma artimanha de batalha para salvar os cinemas de rua, principalmente o Cinema São Luiz, um dos únicos que são mostrados no filme que ainda existe hoje em dia (mas que no momento se encontra fechado para reformas).

Eu sempre comparei às salas de cinema e às igrejas. Na minha cabeça, é como se a cinefilia fosse uma religião, onde as salas são os templos, os filmes a forma de pregação/culto e os líderes religiosos os diretores. No momento que as igrejas se tornaram mais rentáveis que o cinema, uma tomou o lugar da outra.

Ao final de tudo, acredito que a maioria das pessoas que assistiram a Retratos Fantasmas em uma sala de cinema, deixaram o ambiente com uma sensação mais otimista, como sociedade, de que podemos mudar o futuro do cinema nacional, dos centros urbanos e das cidades como um todo. Cinema é massa e filmes de ficção são os melhores documentários.

O lançamento de Retratos Fantasmas

O filme foi exibido ao público pela primeira vez em maio deste ano no festival de Cannes, na França. Ele vai ser o representante brasileiro na disputa por uma vaga na pré-lista do Oscar e futuramente na lista dos indicados.

A sessão da pré-estreia pernambucana de Retratos Fantasmas no Cine Teatro do Parque em agosto foi digna das grandes estréias internacionais, com presença de boa parte da equipe e elenco. 

Os espectadores ainda foram agraciados com uma apresentação do Grupo Guerreiros do Passo ao fim da sessão, na saída do cinema. É uma pena que o filme não tenha tido a chance de ter feito essa pré-estréia no Cinema São Luiz, a sala-xodó dos recifenses e uma das grandes estrelas do filme.

* PC Pereira é produtor audiovisual e trabalha com cinema

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