Espaço, a fronteira final. No vasto palco do cosmos, uma corrida espacial fascinante está em curso, não para explorar novos mundos, procurar novas formas de vida ou novas civilizações, mas (de certo modo) ir corajosamente onde ninguém esteve antes: a supremacia na oferta de internet via satélite.
Um dos maiores players desse mercado passou por um marco importante na semana passada: a gigante do comércio eletrônico Amazon validou por meio de testes sua tecnologia de “links ópticos inter-satélites” (OISL) a ser utilizada no ousado Projeto Kuiper. A ideia é utilizar lasers infravermelhos para transmitir dados entre satélites em órbita – um salto significativo em relação às gerações anteriores que permitiam a comunicação apenas entre dois satélites.
Agora, a constelação de 3.236 satélites em órbita terrestre baixa do Kuiper poderá se conectar simultaneamente com várias outras espaçonaves, formando uma rede em malha no espaço. Esta capacidade é essencial para os planos da Amazon como um todo, já que permite transmitir dados cerca de 30% mais velocidade do que os cabos ópticos terrestres em distâncias equivalentes.
Vídeo do Kuiper
Os testes realizados após o lançamento dos protótipos mostraram que os satélites mantêm links de 100 gigabits por segundo a mais de mil quilômetros de distância. E a Amazon vai precisar dessa velocidade extra, já que na corrida por conexão espacial, a big tech está largando atrás…
Ascensão Meteórica
Esse 2023 foi um ano de crescimento exponencial para a Starlink, a rede de internet via satélite da SpaceX. Segundo dados da empresa de segurança de TI Cloudflare, o tráfego global de internet da empresa quase triplicou este ano, um testemunho da crescente dominação da empresa no setor de comunicações via satélite. Este aumento impressionante no uso se deve à expansão do serviço para mais de 50 países, incluindo nações como Quênia, Filipinas e Zâmbia, que ganharam acesso este ano.
No Brasil, onde a Starlink foi lançada no ano passado, o tráfego foi 17 vezes maior do que em 2022. Enquanto redes rivais, como o já citado Projeto Kuiper e a OneWeb, tentam oferecer concorrência, elas estão ainda longe de desafiar a SpaceX, que possui cerca de 5.000 satélites em órbita.
A expansão da Starlink não ocorreu sem polêmicas. A rede desempenhou um papel controverso em zonas de guerra, como Ucrânia e Gaza. Em resposta à invasão russa da Ucrânia, o bilionário Elon Musk ativou a Starlink no País, mas foi criticado pelo governo ucraniano por supostamente impedir um ataque ao exército russo ao recusar a ativação do serviço na península da Crimeia. Em Gaza, o governo israelense inicialmente alegou que a Starlink seria usada para “atividades terroristas”, embora mais tarde tenha chegado a um acordo com Musk sobre o acesso ao serviço.
Outro revés significativo para a Starlink foi a decisão da Comissão Federal de Comunicações dos EUA (FCC) de negar à empresa quase US$ 900 milhões em subsídios para infraestrutura de banda larga rural. A FCC afirmou que a Starlink “não conseguiu demonstrar que poderia entregar o serviço prometido”, levantando dúvidas sobre sua capacidade de fornecer internet de alta velocidade e baixa latência, conforme exigido pelos benchmarks do fundo.
Como contrapartida, os executivos da Amazon descrevem o Projeto Kuiper em termos bem mais filantrópicos, destacando seu potencial para conectar pessoas em áreas remotas ou empobrecidas com educação e comércio global. Mas, além da filantropia, a Amazon também vê o projeto de US$ 10 bilhões como uma oportunidade para se transformar em um gigante global de telecomunicações. A empresa planeja vender antenas de telhado para usuários individuais de internet, serviços de computação em nuvem e recuperação de dados para empresas, e conectividade para empresas de telefonia móvel, começando em 2025.
Não por acaso, a SpaceX também estaria planejando um desmembramento da Starlink já no próximo ano, por meio de uma oferta pública de ações. A companhia prevê um aumento de 67% na receita no próximo ano, para US$ 15 bilhões, com a Starlink respondendo por US$ 10 bilhões desse valor, ultrapassando a receita do negócio de lançamento espacial.
Dragão estelar
Bezos e Musk não são os dois únicos bilionários de olho nas estrelas. A China, com seu programa espacial ambicioso, também está planejando uma megaconstelação de satélites. Este projeto, ainda envolto em certo mistério, tem o potencial de alterar o equilíbrio de poder na conectividade global via satélite.
A iniciativa chinesa não é apenas uma questão de tecnologia ou comércio; é também um movimento estratégico no tabuleiro geopolítico. Com a capacidade de oferecer internet de alta velocidade em regiões estratégicas, a China poderia aumentar significativamente sua influência global. Este projeto é um lembrete de que a corrida espacial não é apenas sobre ciência e negócios, mas também sobre diplomacia e poder.
Na semana passada, a LandSpace Technology, uma startup chinesa de foguetes privados, lançou com sucesso o transportador Zhuque-2 Y-3 a partir do Centro de Lançamento de Satélites de Jiuquan. O sucesso da missão é mais do que apenas um triunfo técnico; é uma validação do metano como potencial combustível para foguetes.
Esta escolha de combustível é vista como um divisor de águas na indústria devido ao seu potencial para reduzir custos, apoiar foguetes reutilizáveis e fornecer uma solução mais limpa e eficiente em comparação com os combustíveis de foguetes tradicionais. Várias startups privadas chinesas de foguetes estão se preparando para testes ou lançamentos comerciais para atender à crescente demanda no setor.
Este lançamento, assim como os recentes testes dos foguetes Chang Zheng (“Longa Marcha”) fazem parte do ambicioso projeto nacional de megaconstelação de internet via satélite da China, o Guowang. Planejado para consistir em 13.000 satélites em órbita baixa da Terra, Guowang é a resposta chinesa aos planos ocidentais.
A estratégia não consiste apenas em fornecer telecomunicações domésticas e cobertura de Internet, mas também posicionar a China como um interveniente significativo nas telecomunicações globais, um concorrente comercial no setor espacial e melhorar as capacidades de comunicação militares e governamentais. Além disso, esta iniciativa alinha-se com a visão mais ampla da China de construir um sistema integrado de infra-estruturas espaciais que inclua comunicações, navegação, posicionamento e detecção remota.
O problema do lixo espacial
Se você está lendo isso e pensando que ter esse tanto de satélites voando sobre nossas cabeças poder dar alguma grande bobagem no futuro, você não está só. E um dos principais problemas causados pelas megaconstelações é a poluição visual no céu noturno.
Os milhares de satélites ativos em órbita já estão prejudicando a capacidade de astrônomos de fazerem novas descobertas, uma vez que eles ficam fazendo “photo bombing” nas imagens astronômicas geradas a partir do planeta. Além disso, a comunicação via rádio desses satélites pode interferir com instrumentos de radioastronomia sensíveis, necessários para estudos do universo distante.
Há um limite de poluição luminosa que as observações astronômicas podem suportar, estimado em cerca de 10% de aumento na luminosidade ou brilho do céu. Ao ultrapassar esse limite, torna-se praticamente impossível realizar observações científicas do cosmos a partir daqui. Essa interferência ameaça não apenas observatórios terrestres, mas também instrumentos espaciais valiosos, como o Telescópio Espacial Hubble e até nos instintos migratórios de alguns animais.
A NASA já destacou ainda que o aumento no número de satélites em órbita eleva o risco de colisões orbitais. Segundo a McKinsey & Co., aproximadamente 9 toneladas de detritos orbitam a Terra, incluindo satélites inativos, partes de foguetes e destroços de mísseis. Cerca de 670 mil desses pedacinhos são capazes de perfurar a Estação Espacial Internacional e causar uma tragédia.
O aumento de lixo espacial não é apenas uma questão ambiental, mas também uma ameaça à segurança de astronautas e equipamentos. À medida que o espaço entre novos satélites e detritos orbitais diminui, o risco de colisões e danos aumenta exponencialmente.
Apesar desses desafios, há esforços em andamento para mitigar os impactos das megaconstelações. O uso de inteligência artificial para limpar imagens astronômicas e os esforços da União Astronômica Internacional, por meio do novo Centro para a Proteção de Céus Escuros e Silenciosos, são passos na direção certa. Este centro busca envolver e educar as pessoas, aumentar a conscientização e desenvolver soluções técnicas, regulatórias e de agendamento.
As megaconstelações de satélites, enquanto avançam as fronteiras da tecnologia e conectividade, apresentam desafios ambientais significativos que não podem ser ignorados. É crucial equilibrar os benefícios dessa tecnologia com a preservação do ambiente espacial e terrestre, garantindo que o progresso científico e cultural não seja ofuscado pela expansão tecnológica no espaço.
Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF
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