Poucas pessoas, tirando alguns entusiastas dos games (eu sou um entre eles), lembram do Zeebo. Lançado no Brasil e no México em 2009, o aparelho foi o primeiro console de videogame 100% digital: não tinha entrada para mídia física e o download dos jogos e atualizações era feito por uma rede 3G exclusiva e gratuita.
A intenção era boa, mas sua execução nem tanto, já que apesar de contar com franquias grandes da indústria, como FIFA e Resident Evil, a maior parte dos seus títulos eram ports de outros consoles (e alguns até de celulares) com qualidade inferior aos concorrentes Nintendo Wii, PlayStation 2 e Xbox. O Zeebo nunca decolou e foi descontinuado em 2011.
O projeto tinha tudo para ir para o cemitério da tecnologia e viver somente na memória dos gamers mais dedicados, mas um desenvolvedor está trabalhando para imortalizá-lo. Em seu canal no YouTube, o usuário Tuxality vem mostrando seu trabalho para criar um emulador funcional do Zeebo, que rode seus jogos com uma qualidade semelhante à experiência original.
Porém, para quê um desenvolvedor gastaria seu tempo tentando ressuscitar uma plataforma morta, que mesmo quando viva já não era essas coisas? Isso tem a ver com um trabalho feito por uma comunidade que é apaixonada pelo universo dos games, que quer que gerações futuras possam apreciar jogos do passado, e que o trabalho dos artistas digitais seja valorizado mesmo que as empresas que lançaram os títulos originalmente nem existam mais.
A preservação da memória na indústria dos videogames une esforços e atividades destinados a preservar e proteger os jogos, consoles e materiais relacionados, como revistas especializadas. A mídia videogame é relativamente nova, e por isso poucas pessoas se atentam para o fato de que não são apenas uma forma de entretenimento, mas também um importante meio cultural e histórico que reflete os aspectos tecnológicos, artísticos e sociais de seus respectivos períodos de tempo.
Sem a preservação adequada, muitos videogames podem se perder no tempo devido a hardware desatualizado, problemas de compatibilidade de software e outros fatores. Por isso, muitos se dedicam não só à manutenção e restauração de cópias físicas de jogos, consoles e periféricos, mas também em salvar cópias digitais para garantir sua disponibilidade em plataformas modernas. Por isso, tecnologias de emulação e virtualização desempenham um papel crucial em tornar jogos mais antigos jogáveis em sistemas contemporâneos.
Organizações como a Video Game History Foundation (VGHF), a International Game Developers Association (IGDA) e vários museus e bibliotecas trabalham ativamente para promover a preservação de videogames. Um estudo publicado no mês passado pela VGHF, por exemplo, apontou que 87% dos jogos lançados nos Estados Unidos antes de 2010 “estão criticamente ameaçados”. São mais de 4 mil títulos que podem se perder no tempo e nunca mais serem jogados por ninguém.
JOGOS DO PASSADO
“Imagine se a única maneira de assistir ‘Titanic’ fosse encontrar uma fita VHS usada e manter seu próprio equipamento antigo para que você ainda pudesse assisti-lo. E se nenhuma biblioteca, pudesse fazer melhor – eles poderiam manter e digitalizar aquele VHS do Titanic, mas você teria que ir até lá para assisti-lo. Parece loucura, mas essa é a realidade que vivemos com os videogames, uma indústria de US$ 180 bilhões, enquanto os jogos e sua história desaparecem’, explica o relatório.
Esses espécimes ameaçados de extinção se dividem em três categorias de plataformas: as abandonadas, com baixo interesse comercial e poucos jogos disponíveis; as negligenciadas, quando há muito interesse comercial, mas ainda não há muitos jogos disponíveis; e as ativas, que estão o tempo todo relançando seus games. De acordo com a VGHF, em todas as três categorias, o número de jogos disponíveis nunca ultrapassou 20%.
Um exemplo é o Game Boy, da Nintendo. A empresa japonesa até relançou vários títulos originais para consoles mais novos, mais aceleradamente agora com o Switch Online e seu emulador. Mas só 25 jogos do total de 1.873 games lançados para o portátil ainda estão disponíveis para compra. E olhe que esse número já chegou a 155, mas diminuiu drasticamente com o encerramento das lojas virtuais do 3DS e do Wii U em março deste ano.
TRABALHO VOLUNTÁRIO
E esse trabalho de preservação é basicamente voluntário, feito por pessoas que têm alguma relação com a indústria, seja como jogadores, colecionadores ou acadêmicos, até desenvolvedores, designers e engenheiros que hoje trabalham no setor. Por isso, os preservacionistas de games também focam em salvar registros de informações detalhadas sobre jogos antigos, incluindo seu histórico de desenvolvimento, mecânica de jogo, documentos de design e contexto cultural e histórico relacionado. Essa coleta de materiais ainda se estende a peças promocionais, arte conceitual, trilhas sonoras, materiais de marketing e outros artefatos.
O trabalho de “arqueologia digital” é bem mais fácil, claro, com o apoio das empresas donas dos direitos autorais e propriedades intelectuais originais dos jogos. Isso garante que os esforços de preservação não infrinjam os direitos de propriedade intelectual. Questões de licenciamento e direitos autorais também podem prejudicar a preservação, bem como a perda do código-fonte e dos materiais de desenvolvimento.
Um caso famoso é o da franquia Spyro, da Insomniac Games. Entre 1998 e 2000, foram lançados três jogos para PlayStation, e em 2008 a propriedade intelectual do jogo foi comprada pela Activision. Outra companhia, a Toys For Bob, adquiriu o direito de relançar os três primeiros jogos para plataformas modernas, mas o problema é que a Insomniac Games não tinha mais os códigos-fonte dos títulos.
A Toys For Bob teve que desenvolver uma ferramenta para extrair os dados de cada jogo, durante a execução, A “Spyro Scope”. Lançada em 2018, a “Spyro Reignited Trilogy” ganhou o prêmio de Jogo Infantil do Ano no Australian Games Awards. “A história dos videogames é mais do que apenas os best-sellers”, avalia Phil Salvador, diretor da biblioteca da Video Game History Foundation, em entrevista ao The Verge. “Se quisermos entender e apreciar a história dos videogames, precisamos de mais do que uma lista com curadoria dos jogos que os editores decidem ter valor comercial”.
Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF
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