O ano de 2024 marca o bicentenário da Confederação do Equador, movimento revolucionário contra Dom Pedro I que se iniciou em Pernambuco e alcançou outras províncias vizinhas. Um pouco menos lembrada que a Revolução de 1817, que tem até feriado, essa efeméride também chancela uma controvérsia que atravessou os séculos: a perda do território da Comarca de São Francisco.

Atualmente, a antiga Comarca de São Francisco é um território com mais de 100 mil quilômetros localizado no oeste baiano, compreendendo a margem ocidental do Rio São Francisco com as divisas de Goiás, Minas Gerais e Piauí.

Esse território pertenceu à província de Pernambuco até meados de 1824, quando eclodiu a Confederação do Equador. O movimento se voltou contra Dom Pedro I quando o imperador fechou a Assembleia Constituinte de 1823 e decidiu impor uma Constituição. Assim como em 1817, os pernambucanos queriam implantar um regime republicano.

Mapa mostrando o território do Estado de Pernambuco quando ainda contava com a Comarca de São Francisco – Autoria de Michael Serra

A polêmica cessão ‘provisória’

Dom Pedro não apenas conseguiu impor a sua força nas províncias nordestinas, como tomou uma amarga decisão contra Pernambuco, transferindo o território da Comarca “provisoriamente” para Minas Gerais.

Além de vantagens políticas e econômicas, o Estado nordestino perdeu metade de sua extensão, incluindo municípios dotados de movimentação portuária, como Barra, Barreiras, Ibeputa, Remanso, Pilão Arcado e alguns outros.

No decreto de 7 de julho de 1824, o imperador ressalta que, pela constante fidelidade e firme adesão ao Império, Minas Gerais teria as respectivas ordens para governar e administrar a Comarca “provisoriamente, enquanto a assembleia próxima a instalar-se não organizar um plano geral de divisão conveniente.”

Dom Pedro I, por Henrique José da Silva, por volta de 1825

Como, então, o trecho foi para a Bahia? De acordo com o historiador Teodoro Sampaio, a população da Comarca passou a se queixar do fato da capital de Minas Gerais ser muito distante dessa faixa de terra.

Por isso, em 16 de outubro de 1827, a Assembleia publicou o seguinte decreto: “A comarca de São Francisco que se acha incorporada provisoriamente à província de Minas, fica provisoriamente incorporada à Bahia, até que se faça a organização das províncias do Império”.

Novamente, consta a palavra “provisoriamente”. Uma simples palavra que renderia mais um século de disputas, narrativas e desentendimentos entre dois Estados nordestinos.

A luta pernambucana pela volta da Comarca

Tendo sido uma decisão tomada no Império, a questão da Comarca de São Francisco atravessou o século 19 sem maiores controvérsias. Contudo, a chegada da República em 1889 acendeu uma nova chama de esperança. Em um novo regime político, parecia ser um momento certo para a retomada.

Território da Antiga Comarca do Rio São Francisco no Jornal do Recife em 1896

O político que incorporou essa vontade foi o senador João Barbalho, em 1896. Ele argumentou o seguinte: “como a Comarca fora desmembrada provisoriamente por um decreto do Poder Legislativo, apenas outro decreto poderia revogar o anterior”. 

Porém, o projeto não agradou a Casa. “Foi um horror! E para evitar barulhos, pôs-se outra pedra em cima”, mencionou o advogado, político e jornalista Gonçalves Maia em um texto do jornal pernambucano “A Província”.

Foi Gonçalves Maia, inclusive, o responsável por retomar o assunto da Comarca na imprensa pernambucana, em 1919, na ocasião da realização do Congresso de Geografia, realizado em Minas Gerais. Ele agitou o ânimo dos pernambucanos e chegou a explicar.

Texto de Gonçalves Maia no jornal A Província, em 1919

“Essa questão de limites entre Estados não se resolvem assim tão facilmente em meia dúzia de discussões do parlamento. Precisam ser primeiro entre os próprios estado interessados, pelas suas assembleéias, e só depois disso é que, em definitiva, o Congresso Nacional ratificará o que for feito.”

Um século de tentativas

A sugestão de Gonçalves Maia nunca foi de fato colocada em prática ou concluída. Os pernambucanos argumentam que foram injustiçados por terem perdido o território enquanto lutavam pela República. Por outro lado, os baianos afirmavam que já havia se passado um século e que tal determinismo não poderia ser considerado para a entrega do território.

No começo do século 20, o atual desenho das limitações dos Estados ganham mais nitidez, assim como se aprofundam os conhecimentos dos traços de regionalidade. É nessa época, por exemplo, que começa a ser difundida a ideia da existência de um Nordeste – antes, existia apenas o “Norte”.

Ilustração da Comarca de São Francisco em edição de 17 de janeiro de 1960 do Diario de Pernambuco

Assim, os pernambucanos não cessaram a luta. Na década de 1920, o jornal Diario de Pernambuco entrou em peso na campanha, publicando cerca de 12 artigos favoráveis ao Estado. Um deles, de julho de 1920, diz: “A culpa da situação actual cabe sobretudo à Constituinte republicana de 1890-1891 por não haver reparado à injustiça e reintegrado Pernambuco na posse do que perdera por ter sido o Estado precursor da transformação política que se operava.”

“Até que ponto deve este argumento de direito constitucional prejudicar o argumento moral que nos leva a insistir pela cessação de uma pena absurda, já que passou a fato consumado o que fôra julgado aspiração criminosa dos revolucionários?”.

Registro de edição do Diario de Pernambuco de 27 de julho de 1947

Nos registros da imprensa, existem marcas de tentativas de retomar o assunto no Congresso Nacional nas décadas de 1930 e 1940. Durante a constituinte após a Era Vargas, em 1947, Pernambuco chegou a incluir em sua constituição estadual a reivindicação de seu antigo território: “Havendo recusa, ou não sendo possível o acordo, pleiteará o seu direito ao Supremo Tribunal Federal.”

Esforços na imprensa

Na segunda metade do século 20, novamente o Diario de Pernambuco realizou diversas campanhas na tentativa de sensibilizar a opinião pública. Em 1950, o historiador Flávio Guerra assinou outros artigos retomando a questão. 

Nos anos 1960, foi a vez de Severino Barbosa escrever uma série de reportagens com grande repercussão no mundo político, rendendo pronunciamentos de parlamentares, desembargadores, intelectuais e homens de governo.

Um dos textos da série de Severino Barbosa no Diario de Pernambuco, em janeiro de 1960

Na época, chegou a ser informado que habitantes das cidades de Barra, Barreira, Pilão Arcado, Santana e outras estavam como grandes interessados pelo desenrolar do caso. Na interessante situação, passariam de baianos a pernambucanos.

Seja pela falta de força política, ou ao menos um contexto propício, o “Leão do Norte” nunca conseguiu reintegrar a extensa faixa ao seu território. O fato é que, a cada ano que se passava, o sentimento de pertencimento daquele território a Pernambuco tornava-se a cada dia mais distante.

E após tantas discussões na imprensa, o tema chega a este Jornal Digital, talvez não como uma reivindicação, mas um fato da história que merece ser conhecido.

Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio

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