Certa vez, viralizou nas mídias digitais uma imagem da atual Praça do Marco Zero, no Bairro do Recife, antes da reforma do ano 2000: cheia de árvores e banquinhos, com uma estátua do Barão do Rio Branco bem no meio. Nos comentários, muitos usuários faziam a mesma pergunta: “Mas onde se faziam os shows do Carnaval?”.
Quem nasceu na metade dos anos 1990 talvez nunca tenha visto ou vivido o Carnaval do Recife antes do seu atual modelo, chamado de “Carnaval Multicultural”, com polos de folia que consistem em palcos espalhados por diversas zonas da cidade.

Foi esse o formato que oficializou o Bairro do Recife, e especialmente o Marco Zero – como o principal epicentro da folia na capital. Foi percorrido todo um caminho até esse modelo, contemplando subúrbios e o centro histórico onde está alocado o Porto Digital, o maior distrito de inovação do Brasil.
O Carnaval e o poder público
Por mais curioso que pareça hoje, a história do Carnaval no Bairro do Recife é bastante recente. É importante sempre frisar que a folia não começou em palcos: brotou nas ruas de bairros como São José e Santo Antônio, onde surgiram muitas agremiações e nasceu o frevo, no começo do século 20, em um contexto pós-abolição e de modernização dos centros urbanos brasileiros.
O Bairro do Recife teve pouca participação nesse processo, pois, no início do século 20, passava por intensas reformas urbanas que, ao serem concluídas, resultaram na gentrificação da área, afastando moradias e comércios populares.

Por muito tempo, a postura do poder público perante a festa foi de controle social – fosse de repressão, tolerância ou convivência. Podemos dizer que a partir dos anos 1930, com a implantação do primeiro Estado moderno do Brasil, com Getúlio Vargas, a cultura passou a integrar projetos de sociedade e nação.
Nesta mesma década foi fundada a Federação Carnavalesca Pernambucana (FCP), que até meados dos anos 1990 organizou a festa com alguma ajuda do poder público – a Prefeitura arcava com infraestrutura e repasse financeiro para que a FCP pagasse as agremiações.
A chegada do Carnaval ao Bairro do Recife
Entre as décadas de 1970 e 1990, a participação do poder público foi aumentando gradualmente, com a criação de alguns palcos, sobretudo no Centro. O Bairro do Recife entrou nesse mapa após a criação do Plano de Revitalização do Bairro do Recife, que contou com obras emergenciais e articulações com investidores privados. Na imprensa, existem registros de palcos nesta ilha já em 1996, sob o nome de “Dançando na Rua”.
De acordo com o pesquisador e produtor cultural Rafael Moura de Andrade, autor da dissertação em antropologia “A Polícia Multicultural no Carnaval do Recife”, a Praça do Arsenal da Marinha foi o primeiro local a receber estrutura para shows de artistas anualmente, mas com uma realidade muito distante da atualidade.

“De fato, o Bairro do Recife não foi exatamente um grande centro de surgimento de agremiações tradicionais do nosso carnaval como foi o Bairro de São José. São José, Santo Antônio e Boa Vista eram os principais bairros da cidade em todos os aspectos. A imprensa estava concentrada ali, o comércio, a Faculdade de Direito do Recife. Inclusive havia uma espécie de disputa entre agremiações de São José e da Boa Vista, diz Rafael Moura, ao Jornal Digital.
“Quando a gente vai pesquisar e entrevistar as pessoas sobre a memória do Carnaval do Recife nos anos 1990, duas coisas se destacam: o desfile do Galo da Madrugada; e o Recifolia, que era um carnaval fora de época que tocava música baiana. É interessante, porque isso mostra que o Carnaval do Recife mesmo não tinha uma marca forte nacionalmente como temos hoje. Olinda era a mais falada na imprensa nacional”, complementa.
O Rec-Beat

Esse período de “virada do milênio” também trouxe ao Bairro do Recife um festival emblemático, que até hoje é realizado no Cais da Alfândega durante o Carnaval: o Rec-Beat, que foi fundado em um centro cultural em Olinda, mas mudou-se para a Rua da Moeda a pedido da Secretaria de Cultura do Recife, transformando o local no principal “fervo” noturno carnavalesco.
“Lembro que não tinha Carnaval no Bairro do Recife nessa época, apenas um palco meio mambembe, sem projeção, nem conceito. Na época, Raul Henry era vice-prefeito do Recife e jogou a proposta de que o Rec-Beat fosse para a Rua da Moeda, justamente com o objetivo de fomentar o carnaval no Bairro, sendo um atrativo pro público jovem”, diz Antônio Gutierrez, o “Gutie”, fundador e diretor do Rec-Beat.
“O festival foi crescendo, até que a Moeda ficou pequena e nos mudamos para o Cais da Alfândega, em 2004. Acho que depois de um tempo esse conceito do Rec-Beat acabou indo para outros polos e palcos”, continua. Atualmente, o festival está em sua 29ª edição.
O Carnaval Multicultural

A grande virada veio em 2001, com o início da gestão de João Paulo (PT) na Prefeitura do Recife. Foi nesse ano que o Carnaval Multicultural ganhou forma (embora ainda não tivesse esse nome), com um planejamento estruturado e uma clara intervenção pública, retirando o protagonismo da Federação Carnavalesca Pernambucana.
O formato tinha uma organização de polos de animação distribuídos no centro da cidade e também em bairros periféricos. O conceito era baseado em três ideias principais: a diversidade das manifestações, a democratização e a descentralização.
Nesses primeiros anos, o Polo da Praça do Arsenal se chamava Polo das Fantasias, dedicado a um clima nostálgico. Já o Rec-Beat era mencionado de “Polo Mangue” pela gestão. Também existiam o Polo de Todos os Frevos, Polo Afro, Polo das Tradições e Polo das Agremiações.

A reforma da Praça do Marco Zero, concluída pouco antes para ser espaço de grandes eventos, foi determinante. “Entendemos que aquele local é a origem, o centro cultural da cidade. O Marco Zero era o polo central da multiculturalidade, dos grandes encontros”, diz João Roberto Peixe, que foi secretário de cultura durante a criação do modelo.
“Já existiam alguns polos, mas não o conceito, a estrutura e organização que surgiu após isso. O processo do Carnaval nunca começa do zero; traz elementos que já existiam numa nova dinâmica, num novo impacto. E nesse caso, isso ocorreu sempre com enfoque nas raízes culturais do Recife e de Pernambuco”, completa.
O Carnaval como regeneração do Centro

Compreendendo o Carnaval como um processo de desenvolvimento cultural e também urbano, João Roberto Peixe acredita que o modelo Multicultural floresceu durante uma reaproximação das cidades com seus centros históricos – o Porto Digital, por exemplo, também foi fundado em 2001.
“Após um período de decadência, começaram a implantar políticas de incentivo, que tiveram reflexo em todos aspectos da vida da cidade, especialmente na cultura. Esse Carnaval deu uma visibilidade nacional e internacional para a cultura pernambucana”, diz o ex-secretário, sobre a ocupação do Bairro do Recife.
Ele acredita que o Carnaval Multicultural influenciou o crescimento de outras festas nos centros históricos do país. “Principalmente as mudanças no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e até Salvador, que ajudaram a democratizar o carnaval baiano, até então marcado pelas ‘cordas’ de divisão.”

Rafael Moura concorda que o modelo tornou o Carnaval mais competitivo frente a Salvador e Rio de Janeiro, mas aponta que a constante renovação é necessária. Além disso, a criação dos palcos deu origem a uma espécie de rixa entre as atrações de ‘palco’, que teriam os melhores cachês, e as de ‘chão’, que são as agremiações e os cortejos populares.
“O modelo precisa ser aprimorado a partir de uma retomada de uma ideia de política pública para a festa que tenha no carnaval um momento de culminância. Precisa buscar ainda mais o fortalecimento das manifestações ‘de chão’ que a gente costuma chamar de cultura popular”, diz.
O Carnaval Multicultural fez do Recife um dos grandes destinos da folia, equilibrando tradição e inovação e consolidando o Bairro do Recife como seu epicentro. Entre palcos e cortejos, a festa reflete a cidade e hoje carrega o desafio de manter vivas suas raízes populares.
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