Até as primeiras décadas do século 20, o Recife realmente urbano era praticamente restrito ao que conhecemos do Centro. Adentrando às zonas Norte, Oeste ou Sul, existiam os “arrabaldes” – expressão que usavam para os subúrbios. É curioso pensar que até mesmo a atual região do bairro do Derby, tão central no cotidiano recifense com sua praça, estação de BRT e polo de serviços, tinha esse aspecto pouco urbanizado.
Na década de 1920, a capital modernizava-se com as reformas do Porto, do atual Bairro do Recife e a abertura da Avenida Beira-Mar, mas também com “as grandes obras de melhoramento do Derby”, que tornavam aquele bairro um pequeno oásis de grande futuro.
Antes, um processo de valorização dos terrenos do bairro do Derby envolveu a criação de um hipódromo (o Derby Club), de um moderno mercado (de Delmiro Gouveia) e da Grande Exposição de Pernambuco, que reunia o que havia de mais sofisticado no Estado. Vamos destrinchar um pouco dessas etapas neste texto.
‘O sítio do pai do bispo’
Durante a maior parte do tempo, aquela região era conhecida como Estância, por ter sido a estância de Henrique Dias, um dos heróis da Restauração Pernambucana no século 17. O atual bairro surgiu em 1888.
Podemos ter uma interessante visão do que foi o Derby antes desse processo de modernização no texto “Do Passado e do Presente”, assinado por Manuel Caetano no Diario de Pernambuco, em 1924.
“Quanto ao que havia ou houve ali de 1875 a 1923, recordo e posso contar que o mais importante dos sítios teve como proprietário um sr. Duboureque, que era estrangeiro ou apenas descendentes de estrangeiros, provavelmente de franceses ou belgas, a julgar pelo nome. Depois, aquele sítio foi ocupado, durante anos, pelo sr. Antônio Gonçalves, progenitor do venerado bispo Dom Vital. O ‘sítio do pai do bispo’, como vulgarmente o chamavam, era uma excelente chácara”.
O maior prado do Recife
Mais tarde, uma poderosa empresa propôs à Prefeitura da época a construção do maior prado de corridas de cavalos da cidade, o Derby Club – até então, também existiam prados na Madalena (o atual bairro do Prado) e do Campo Grande (atual bairro do Hipódromo), porém mais modestos. Surgia, assim, o atual nome do bairro.
A empresa comprou o sítio e os terrenos das adjacências, demoliu casas, derrubou árvores e executou um trabalho de terraplanagem para a pista, a mais extensa do tipo, e levantou uma confortável arquibancada, que por alguns anos reunia, nas tardes de domingo, a nata da sociedade recifense.
“O prado do Derby Club foi sempre tido como o da ‘elite’ pernambucana. Naquele tempo não havia automóveis e as linhas de bondes da Madalena e de Fernandes Vieira, as que mais perto dele passavam, teriam, não obstante, de deixar os frequentadores um tanto longe do seu único portão, situado quase no fim da Rua das Crioulas, hoje (Rua) Numa Pompílio”, recorda Manuel Caetano.
O primeiro shopping
Extinto o prado de corridas, o terreno logo foi adquirido pelo visionário empresário Delmiro Gouveia, que viu naquelas terras já conhecidas e levemente melhoradas uma oportunidade de negócio. Inspirado na Exposição Universal de Chicago, de 1893, transformou a área da antiga arquibancada em um mercado moderno. O Mercado Coelho Cintra virou sensação entre a classe média.
Muitos historiadores, a exemplo de William Edmundson, apontam que esse pode ser considerado o primeiro shopping center do Brasil. O termo “shopping” não era usado, mas tinha a mesma finalidade: reunia 264 compartimentos alugados a comerciantes, restaurantes, teatro e até hotel.
“O famoso Mercado da Estância, de Delmiro Gouveia, obteve outra aura de interesse. Porque se instalaram divertimentos populares nos terrenos da antiga pista, e para ali todas as noites afluíam o povo ávido de jogos, de barraquinhas, de música, de palestras e também de namoro…”, registrou Mário Sette no livro “Arruar – História Pitoresca do Recife Antigo” (1948).
“A luz elétrica ofereceu-se abundantemente em público no Derby, quando Delmiro Gouveia manteve ali seu grande Mercado com vários divertimentos, na campina onde existira o prado de corridas. Orgia de luzes. Ponto de atração da cidade inteira. Teatro. Hotel. Jogos. Até bonde se teve para o Derby”, continua.
Os baixos preços do Mercado incomodaram a concorrência, algumas elites e políticos. O então prefeito do Recife Esmeraldino Bandeira criava diversos entraves burocráticos ao negócio. O empreendimento fechou as portas após um incêndio criminoso, motivado pelas desavenças que Delmiro tinha com esses figurões da política pernambucana.
Um “novo Recife”
O Derby passou a primeira década do século 20 relativamente esquecido, até que transformou-se em um dos principais alvos da propaganda do então governador Sérgio Loreto – também responsável por entregar o Bairro do Recife reformado e a Avenida Beira-Mar, que ligou o Centro à praia de Boa Viagem.
O Derby tornou-se um espelho de um “novo Recife”, conforme ficou eternizado em uma capa da Revista de Pernambuco (um projeto editorial do Diario de Pernambuco), que fez ampla cobertura às reformas, em março de 1925.
As principais mudanças foram: a reforma do antigo Mercado Coelho Cintra, que passou a abrigar o 2º Batalhão da Força Pública (atual Quartel do Derby, comando da Polícia Militar), a construção da Praça do Derby e a dragagem do antigo canal do Derby, hoje situado entre as duas vias da Avenida Agamenon Magalhães.
Uma curiosidade é que o 2º Batalhão da Força Pública antes ficava no atual Palácio da Justiça, que também foi reformado nesse mesmo período, obrigando o poder público a achar um novo local para a polícia.
“Para resolver o problema de alojamento do batalhão assim deslocado, tomou o governo a deliberação de executar serviço definitivo, aproveitando os terrenos do antigo mercado Coelho Cintra, no Derby, e saneando toda essa zona até agora abandonada, apesar de sua posição, hoje no Centro da cidade. O majestoso edifício obedece ao estilo renascença e dá a quem o vê de frente uma excelente impressão provocada pela elegante e artística fachada”, registrou a Revista de Pernambuco, em 1924.
Sobre as obras, o veículo registrou: “Começaram em abril de 1924 a dragagem e o aterro da “campina do Derby”, onde cerca de trezentos homens com dois compressores e uma draga, estão diariamente trabalhando. Já em dois meses, foi aterrado uma área de 9.500 metros quadrados. Com isso, desapareceu a grande área alagada que ali existia”.
“O plano geral dos trabalhos organizado pelo Departamento de Obras Públicas compreende, além dos serviços primordiais de drenagem pela abertura de um canal, com os muros de cais e o aterro de que falamos, ainda a construção de avenidas profundamente arborizadas e de um grande bosque que farão da nova Praça do Derby o logradouro mais pitoresco da cidade do Recife”.
Os lotes terrenos da área de “grande futuro” na cidade começaram a ser vendidos no começo de 1925, atraindo figuras do “alto comércio”. Abaixo, vemos a residência de José Pessoa de Queiroz.
Exposição Geral de Pernambuco
Ainda antes da finalização das obras, o Derby passou a receber a Exposição Geral de Pernambuco, organizada em comemoração ao primeiro centenário da Confederação do Equador. Os estandes ficavam montados de frente para o prédio do Quartel.
“A exposição ainda terá a virtude de atrair para a nossa capital algumas centenas de visitantes, que se encarregarão de proclamar lá fora as belezas da nossa metrópole e de observar a ânsia de aperfeiçoamento concretizado em nosso progresso material”, disse a Revista.
“O Derby, em cujo edifício estão colocados os mostruários de grande feira, apresentar-se-á às noites, feericamente iluminado. Será possível verificar a grandeza dos melhoramentos objetivados naquele aprazível parque, que passará a ser um dos mais encantadores aspectos do Recife”.
O bairro do Derby ainda atravessou algumas décadas sendo um reduto aristocrático, até que foi dando vazão ao crescimento populacional, dos transportes e dos serviços na capital. Hoje, parte da história aqui contada consta em uma placa numa estação de ônibus, quase imperceptível em meio ao cotidiano agitado dos dias atuais, distante daquele antigo “arrabalde” de outrora.
Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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