O Recife dos anos 1990 foi marcado por um certo surto de invenção, criatividade e inovação, apesar das limitações econômicas e estruturais. Na cultura, isso ficou muito bem documentado com o movimento manguebeat. No setor da tecnologia, ocorreram várias iniciativas que culminaram no Porto Digital, fundado em 2000.
Podemos citar a criação do CESAR, do Centro de Informática (CIn) da Universidade Federal de Pernambuco (no formato que hoje conhecemos) e, é claro, de empresas. A história que será resgata a seguir dialoga com tudo isso: o nascimento da primeira pré-incubadora de empresas do CIn, o projeto Recife Beat, criado em 1996 – bem antes da popularização do conceito de “startups”.
Aqui, “beat” (batida, em inglês) é um acrônimo para “Base para Empreendimentos de Alta Tecnologia”, mas o uso da palavra também expressava um alinhamento com essa efervescência criativa da capital. O símbolo do projeto, inclusive, era uma alfaia, instrumento percussivo muito usado na cena mangue.
O nome foi uma ideia do professor Silvio Meira, que era um frequentador do festival Abril Pro Rock, vitrine de bandas recifenses para o Brasil. Meira sempre gostou de dar nomes às coisas do futuro ecossistema, a exemplo do CESAR.
Coincidentemente, o fenômeno musical que nos trouxe bandas como Chico Science & Nação Zumbi até hoje inspira o nome de uma outra iniciativa que envolve startups, o Mangue.Bit.
Estimulando estudantes
A história do Recife Beat começa junto ao início do projeto GENESIS – Geração de Novos Empreendimentos em Software, Informações e Serviços, uma iniciativa da Softex – Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro. Um dos criadores do GENESIS foi Fabio Silva, que viria a ser o primeiro presidente do Porto Digital.
“Na década de 1990, tínhamos poucas instituições voltadas a esse processo de inovação e empreendedorismo. O GENESIS criou pré-incubadoras em várias universidades, sendo o Recife Beat uma delas”, explica Fabio Silva.
Qual a importância de uma pré-incubadora? “Isso depende do tempo histórico para o qual olhamos. Hoje, temos um ecossistema bem montado, então o objetivo seria preparar pequenas empresas para o mercado. Mas, naquele contexto, era mais para estimular, dar meios e instrumentos para que os alunos da graduação tivessem uma veia empreendedora por si próprios. Lá no começo, aprendemos que os alunos não queriam empreender porque não tinham esse estímulo”.
O incentivo ocorria através de bolsas da SOFTEX e espaços físicos para trabalho no CIn, além de eventos e palestras. “Era um processo bem estruturado, começando com a atração de alunos da disciplina Empreendimentos em Informática, também criada em 1996. Existia um modelo de plano de negócios desenvolvido pela Softex, que fazia com que os estudantes pensassem no negócio.”
Mão na massa
Na prática, o Recife Beat era uma espécie de consórcio que envolvia diversas instituições: CIn; SOFTEX Recife; Incubatep (incubadora do Instituto de Tecnologia de Pernambuco – Itep); Sebrae, Pernambuco S.A (empresa investimentos privados) e CESAR.
Os alunos recebiam a bolsa para desenvolver produtos que iam direto para a Incubatep, sem precisar passar pelo processo seletivo, para a etapa da incubação. Quem fazia a pós-incubação era o CESAR. Quem dá um exemplo prático do funcionamento é o professor Carlos Ferraz, primeiro coordenador do projeto:
“Digamos que um aluno teve uma ideia para melhorar o desempenho de uma rede WiFi e acha que consegue desenvolver um software para instalar nos provedores. Isso seria um bom negócio? Analisávamos se o mercado teria espaço para isso, se existiria concorrente. Essa era a pré-incubação”, explica.
“Após isso, o projeto ia para incubação na Incubatep, quando diminuía um pouco a questão do desenvolvimento tecnológico e aumentava a questão do negócio. Como transformar essa tecnologia num negócio? A pós-incubação era com o CESAR, que iria tentar oferecer o serviço para empresas locais e de fora. Assim, as empresas do Recife Beat teriam a sua chance.”
Apesar da exemplificação, as coisas não necessariamente ocorreram dessa forma. Carlos Ferraz relembra que existia uma certa “ingenuidade” na época, em um otimismo que tentava reproduzir o que ocorreu no Vale do Silício, ecossistema surgido a partir da Universidade de Stanford.
“Eu criei um painel no Departamento de Informática, onde iríamos colocar os logotipos das empresas que conquistassem o primeiro milhão de faturamento. Enquanto estive no projeto, nenhuma empresa chegou a esse faturamento. Hoje, várias saem faturando alguns poucos milhões com rapidez”, relembra.
“O CIn é uma grande incubadora”
Entre as empresas que nasceram no projeto estiveram: Agrotech, Bússola Brasil, NEWStorm, Zaite, Buscagrátis.com, Kernel Informática, Minds, Mobile, Nação Software e Patch Work, BM Informática, D’Accord, NEWStorm, Prograph, Compulife, entre outras.
“Um conjunto de empresas surgiram. Algumas vingaram, outras não. Muitas mudaram de rumo depois, foram para outros caminhos. Aquelas pessoas que faziam parte das empresas ainda estão por aí no mercado, de outra forma, com outras empresas”, diz Carlos Ferraz.
Em 2000, a onda de empreendedorismo nos cursos também deu origem à disciplina Projeto de Desenvolvimento, apelidada pelos alunos de “Projetão” e cujo modelo foi reproduzido em outras universidades. Diante desse desenvolvimento, aliado à estruturação do ecossistema, o Recife Beat foi tornando-se dispensável.
Nos arquivos do site cin.ufpe.br/beat no web.archive.org, o último edital do Recife Beat foi lançado em 2005. “Não precisávamos mais do consórcio, pelo menos formalmente. Por isso, o nome Recife Beat é mais história.”
“Hermano Perrelli, o primeiro professor do Projetão, costuma dizer que projetos são organizações temporárias. Projeto tem que ter começo, meio e fim. Caso contrário, não é um projeto, mas sim uma instituição”, comenta Fábio Silva.
O professor Alex Sandro Gomes, último coordenador do Beat, assinala que hoje “o próprio CIn é um incubadora de empresas”. “Existem centenas de pesquisadores, um lugar seguro. Esse DNA se espalhou pelo sistema inteiro. A disciplina Projetão é essencial para a criação de empresas, agregando professores de áreas como design, psicologia e administração, além da articulação com o Porto Digital.”
“Hoje, não é necessário dizer para o aluno que é preciso empreender”, aponta Fabio Silva. “Isso é óbvio. A gente tornou isso óbvio com o GENESIS, com o Recife Beat. Faz parte do dia a dia de quem entra no CIn, no CESAR School, em qualquer lugar em que se fale de inovação. Não é mais estranho como era há 30 anos atrás.”
Assim como o manguebeat fez com a cultura, o Recife Beat ajudou a plantar sementes de um ecossistema empreendedor que floresce até hoje. O espírito colaborativo continua vivo, impulsionando novas ideias e fortalecendo a posição do Porto Digital como um dos mais importantes parques tecnológicos urbanos do Brasil.
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