Há quase 40 anos, no Bairro do Recife, jovens eram “transportados” para um boteco grego com decoração de época, radiola de ficha com música mediterrânea e até marinheiros quebrando pratos – uma tradição milenar da cultura grega que simboliza alegria e sorte.

Para chegar até esse local, era necessário subir três escadas íngremes de um prédio degradado da Rua Vigário Tenório, 43, bem próximo ao Armazém 13 do Porto – que hoje abriga o bar Seu Boteco.

Fachada do imóvel da Rua Vigário Tenório, 43, onde funcionou o Bar do Grego (Crédito: Google Street View/Reprodução)

Ali, no Bar do Grego (ou Atenas Bar), algo começava a ferver. Enquanto o Recife virava as costas para sua própria ilha histórica, esse grupo intuía que aquele cenário exótico poderia ser um refúgio, um espaço para criar. A música que gostavam – estranha demais para os circuitos tradicionais da cidade – encontrou ali um palco. Uma ocupação cultural ganhava forma.

Os primeiros eventos que dariam origem ao manguebeat aconteceram nesses logradouros esquecidos, incluindo bordéis. Essa efervescência também ocupou galpões, armazéns e as ruínas do Edifício da Alfândega.

Movimentação do Atenas Bar, ou Bar do Grego, em 1989 (Crédito: Diario de Pernambuco via Hemeroteza Digital)

Quem ajuda o Jornal Digital a refazer esse percurso é o jornalista Renato L e o músico Fred Zeroquatro, que apresentam a aula-espetáculo Projeto Mangue na Caixa Cultural Recife, nesta quarta (19/03) e quinta-feira (20/03).

Explorando a ilha

No final dos anos 1980, o Bairro do Recife atingiu o seu ápice de decadência. A região já sofria um processo de esvaziamento desde a década de 1950, após o fim da Segunda Guerra, mantendo movimentação pela atividade portuária e muitos bancos que ali existiam.

Contudo, após a migração de muitos serviços portuários para o Complexo de Suape, no Litoral Sul, durante a década de 1970, essa decadência se agravou, legando ao bairro a fama de “zona de meretrício” da cidade.

Ao mesmo tempo, o Recife vivia um período de estagnação cultural.  Desde os anos 1970, o último grande movimento artístico havia sido o armorial, de Ariano Suassuna, ligado a uma tradição erudita do sertão. A pujante indústria local de rádio e televisão perdeu espaço para as grandes redes do Sudeste.

Edifício Chantecler furante período de degradação do Bairro do Recife, em 1976

Os espaços para eventos culturais tornavam-se cada vez mais reduzidos e muitos artistas emigravam para o Sudeste, onde existiam oportunidades. Para quem estava aqui, era preciso improvisar, assim como fazia a geração punk na Inglaterra, que tinha como lema “do it yourself” (“faça você mesmo”).

“No final dos anos 1980, eram realizadas algumas festas em armazéns abandonados, coisas desse tipo. Era um período de muita decadência até para os bordéis, onde começamos a fazer festas, já que não existiam pistas no Recife que tocassem o que queríamos dançar”, relembra Renato L, que foi secretário de cultura do Recife de 2009 a 2012.

A emblemática festa do Adílias Place

Fachada do imóvel da Avenida Rio Branco onde funcionou o Adília’s Place (Crédito: Google Street View/Reprodução)

O primeiro local utilizado para uma festa foi o Adília’s Place, que era um bordel localizado na Avenida Rio Branco, que hoje se tornou um boulevard com diversos bares. O Adília’s era frequentado por marinheiros gregos, coreanos, russos, entre outras nacionalidades, que chegavam nos navios que ainda ancoravam no Porto do Recife.

“Procuramos a Dona Adília, responsável pelo local, e combinamos que ela ficaria com o bar e nós com a bilheteria. Nesta noite, o bordel não funcionaria, tanto que a festa foi intitulada de ‘Sexta Sem Sexo’. Isso deu início a uma série de festas, shows, que começaram a ocupar o Adílias e outros lugares, como armazéns e galpões, antecipando o processo de revitalização da Prefeitura mais tarde”, diz Renato.

Entre os outros frequentadores dessas noitadas estavam DJ Dolores (que possui uma música intitulada ‘Adília’s Place’, lançada em 2019), Jorge du Peixe e Chico Science.

Cartaz da festa Sexta Sem Sexo, realizada no Bairro do Recife nos primórdios do manguebeat (Crédito: Acervo DJ Dolores)

Renato frisa que o público original desses espaços não foi “expulso” pelas festas. “Rolava uma convivência. Os marinheiros continuavam indo, as trabalhadoras do bordel eram as atendentes e deixavam uma lista na portaria para a entrada de alguns ‘maridos’ delas, que não precisavam pagar. Tínhamos regras de condutas: exigimos que não tivesse assédio ou abordagens agressivas”.

Fred Zeroquatro, integrante da banda Mundo Livre S/A e autor do manifesto do manguebeat, divulgado em 1992, recorda como funcionava a iniciativa de forma cooperativa, em uma época em que a divulgação não contava com as redes sociais.

“Descobrimos que era possível realizar essas festas apenas contratando o som, principalmente na baixa temporada de movimentação do Porto. Deu muito certo. Mandamos fazer os cartazes, que eram espalhados pela cidade, e imprimimos os ingressos”, diz Fred.

Referência na historicização do manguebeat, o jornalista José Teles, no livro “Criança de Domingo: uma biografia musical de Chico Science” (Belas Letras, 2024), menciona que essa movimentação cultural do Bairro do Recife também foi motivada pela chegada de uma filial do Circo Voador, emblemático espaço de shows do Rio de Janeiro, bem no Cais do Apolo,  em 1986 – em um terreno baldio onde seria construído o prédio do Tribunal Regional Federal.

Renato L e Fred Zeroquatro, que comandam o Projeto Mangue em Movimento (Crédito: Hugo Coutinho/Divulgação)

“O Circo mexeu com o bairro, promoveu grandes encontros e badalados shows, nacionais e internacionais. Virou um ponto de encontro na época, o rock brasileiro continuava em evidência. Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso atraíam sempre um bom público ao circo, assim como astros da MPB”, registra Teles.

Fred Zeroquatro discorda da hipótese de que essa filial tenha sido o grande motivador da movimentação. “Esses eventos eram todos de bandas de fora, estouradas no rádio. Mas nós também não tínhamos oportunidades como músicos. Eu já tinha a Mundo Livre S/A, que era uma banda de garagem de Candeias, em Jaboatão. Não frequentávamos o Bairro do Recife apenas por conta desses shows grandes”.

Economia criativa e teatro também floresceram

Paço Alfândega antes da reforma de 2002 (Crédito: Pontual Arquitetos)

A música não foi a única linguagem artística que ganhou espaço no Bairro do Recife durante essa efervescência, visto que o mangue contemplou diversas áreas da cultura.

O então abandonado Edifício da Alfândega, que pertencia à Santa Casa da Misericórdia, passou a receber uma feira de economia criativa que ficou conhecida como Mercado Pop.

“O Abril Pro Rock trouxe uma inovação para o circuito de shows do Recife da época, que foi o mercado alternativo com diversos stands de estilistas, discos e gastronomia. Ao mesmo tempo, existia uma tendência em São Paulo de ocupar casarões antigos na Avenida Paulista para fazer o Mercado Mix. Aqui, isso se desdobrou com o Mercado Pop”, diz Fred Zeroquatro.

Ele relembra que o prédio era uma “ruína totalmente abandonada, quase caindo”.  “Mas deu certo porque estabeleceram uma regularidade e muita gente entrou na ideia. ìamos lá fazer um mutirão para limpar, tirar poeira, e rolou mesmo com muita coisa de ruína. Virou uma coisa fixa no calendário da cidade, com um circuito pop cada vez mais emergente, com as cenas do mangue”, conta.

Nos anos 2000, a Alfândega foi transformada no shopping Paço Alfândega. Hoje,  o espaço funciona como um “office & mall”, abrigando muitas empresas embarcadas no Porto Digital.

Já no Cais do Porto, o Armazém 14 foi ocupado pelas artes cênicas por meio de uma iniciativa da produtora cultural Paula de Renor.

Armazém 14, que virou point cultural, antes da reforma da década de 2010

“No fim dos anos 1990, vi que a cidade tinha uma efervescência de produção e não tinha espaço para ela escoar. Em setembro de 2000, abrimos com cinco espetáculos, de segunda a segunda. Foi muito bacana, deu um boom na produção cultural independente da cidade”, registrou Paula de Renor, em publicação de 2016.

“O problema é que os contratos eram feitos de seis em seis meses. Por isso, nunca pude ter patrocínio por aquele espaço. […] Meus 11 anos serviram para fincar o Bairro do Recife a certeza de ter um espaço cultural, de respeitar a essência artística daquele lugar.”

O Rec-Beat e o Pina de Copacabana 

Roger de Renor, responsável pelos pares Soparia e Pina de Copacabana (Crédito: Acervo Pessoal de Roger de Renor)

Nos anos 1990, o produtor cultural Antônio Gutierrez, o “Gutie”, começou a usar o Francis Drinks (antigo Adília’s Place) para temporadas com bandas da cena, batizando a iniciativa de “Projeto Rec-Beat”. Esse projeto evoluiu para um festival independente, realizado no Centro Cultural Luiz Freire, em Olinda, durante o Carnaval.

Após a revitalização na Rua do Bom Jesus via poder público, a Prefeitura do Recife incentivou a mudança do Rec-Beat para a Rua da Moeda, no Bairro do Recife, visando criar um novo point noturno na folia no Bairro do Recife.

“Lembro que não tinha Carnaval no Bairro do Recife nessa época, apenas um palco meio mambembe, sem projeção, nem conceito. Na época, Raul Henry era vice-prefeito do Recife e jogou a proposta de que o Rec-Beat fosse para a Rua da Moeda, justamente com o objetivo de fomentar o carnaval no Bairro, sendo um atrativo pro público jovem”, disse Gutie, ao Jornal Digital.

Mais tarde, para reforçar a revitalização dessa área e atender algumas necessidades do público do festival, a Prefeitura também propôs um incentivo ao produtor cultural Roger de Renor para levar uma filial temporária do bar Soparia — ícone da geração mangue, localizado no bairro do Pina — para a Moeda, ao lado do palco do Rec-Beat. Essa filial se chamaria Pina de Copacabana.

Escultura de Chico Science na Rua da Moeda por Hugo Acioly

“Fiz uma proposta pra eles que poderia ir, mas não como apenas âncora do Rec-Beat, mas como âncora daquele lado do bairro”, disse Roger de Renor no livro “Soparia – De boteco a palco de todos os jovens” (Cepe, 2023), de José Teles.

“O Pina de Copacabana, no começo, seria só Pina. Na época, a música de Otto, ‘Bob’, estava tocando, falando num Pina de Copacabana. […] Como ficava perto do terminal do Cais de Santa Rita e já havia a comoção, a coisa da fama do manguebeat, ali deveria ser uma coisa incontrolável, mais do que a Soparia. E foi o que aconteceu. E entendo que foi algo proposital e planejado”, disse Roger.

O Pina de Copacabana durou dois anos. É justamente ao lado do antigo prédio do bar que hoje existe uma estátua de Chico Science, integrante do Circuito da Poesia, uma iniciativa da Prefeitura para homenagear poetas e músicos da capital.

Já o Rec-Beat mudou-se para o Cais da Alfândega, ao lado do Paço Alfândega, em 2005, diante da grande demanda de público. Lá existe um caranguejo gigante, um dos símbolos do movimento mangue.

A divisão do Bairro do Recife entre Oriente e Ocidente

Rua do Bom Jesus (Crédito: Bruno Lima MTUR)

O “lado do bairro” que Roger de Renor menciona ao falar da Rua da Moeda tem a ver com a divisão que se criou no imaginário destes frequentadores na época.

No final dos anos 1990, foi criado o Plano de Revitalização do Bairro do Recife, que contou com obras emergenciais e articulações com investidores privados com mediação do poder público

A Rua do Bom Jesus foi a primeira a sentir os resultados desse trabalho, reunindo bares e espaços culturais. Com isso, esse lado mais sofisticado foi apelidado de Berlim Ocidental, enquanto a área da Rua da Moeda, com uma pegada mais alternativa, era Berlim Oriental – referência à divisão da Alemanha durante a Guerra Fria.

“O poder público adotou a Rua do Bom Jesus e o Marco Zero para investimentos e revitalização. Quando houve a abertura do museu da Sinagoga Kahal Zur Israel, surgiram muitos bares gourmets lá. O poder público foi pegando carona e querendo dar um perfil, digamos, mais comercial. Nessa mesma época, investidores mais pesados viram o potencial do Paço Alfândega, que virou shopping”, diz Fred Zeroquatro.

Legado multicultural

Festival Rec Beat no Cais da Alfândega, em 2015 (Crédito: Ariel Martini)

Todas essas movimentações culturais fomentadas pelo poder público culminaram, em 2001, na implementação do Carnaval Multicultural, durante a gestão de João Paulo (PT), com diversos polos de animação no centro histórico e nos subúrbios.

“Sempre que me perguntam o que eu colocaria como legado da cena mangue hoje no Recife, eu sempre cito o Carnaval Multicultural, na gestão do secretário de cultura João Roberto Peixe. O próprio Peixe assumiu que a ideia tinha a ver com o conceito de multiculturalismo do mangue”, diz Fred. “Rua da Moeda, Paço Alfândega, Rec-Beat, Cais da Alfândega… Tudo isso tem a ver com a iniciativa da cena do mangue que ocupou aquela região”.

Renato L destaca que existiu um processo global de revitalização de zonas portuárias, mas também acredita que o manguebeat antecipou essa movimentação na área, mencionando ainda o Porto Digital:

“O elemento da tecnologia também era um discurso do mangue. A gente tinha o H.D Mabuse, que trabalhou por 25 anos no CESAR, e o Silvio Meira tinha uma ligação com o maracatu. Existia essa movimentação entre cultura e tecnologia. É algo bacana que poderia ser usado para a revitalização de outras áreas do Centro”, diz.

Guia gastrocultural do Bairro do Recife

Guia interativo de estabelecimentos do Bairro do Recife é lançado pelo Porto Digital

Hoje, o Bairro do Recife é um polo boêmio e gastronômico do Centro do Recife. Em 2024, o Porto Digital lançou um guia interativo com um levantamento dos restaurantes, bares, cafés, estacionamentos e espaços culturais do bairro.

O trabalho, que encontrou mais de 100 estabelecimentos, pode ser acessado gratuitamente pela internet. O levantamento mais recente localizou 42 restaurantes, 20 bares, 39 cafés/lanchonetes, 1 cinema, 3 teatros, 8 museus/galerias de arte e 12 estacionamentos.

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