Por Silvia Bessa

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#Embarcados: série de reportagens conta história e futuro de estudantes

Família, namorada e amigos fazem a diferença para as realizações

Naquele dia, Carlos Franklin alinhou o bigode, vestiu uma camisa de malha preta, gola bicolor rente ao pescoço e sobrepôs um cordão de prata. Estava pronto para comemorar no estilo, com os amigos, a namorada Maria Eduarda e a família, a resposta recebida após se ajoelhar e cochichar com Deus: “Senhor, não quero tirar a oportunidade do outro. Eu gostaria de passar nessa seleção, mas eu não quero passar para chegar no meio do caminho e desistir. Então, só quero se o Senhor tiver algum propósito na minha vida”. Varava a noite. Celular abandonado no canto da cama. Olhos esbugalhados. 

Não havia cobiça por parte de Franklin. Era um forte desejo de se tornar estudante do curso de graduação de Análise e Desenvolvimento de Sistema, lançado pelo Programa Embarque Digital, do Porto Digital e da Prefeitura do Recife com bolsas integrais de estudo para jovens oriundos da Rede Pública, participantes do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) ou do SSA (Sistema Seriado de Avaliação).

“Se não fosse o Embarque Digital, nunca teríamos a oportunidade de um ensino superior dessa qualidade” Foto: PC Pereira

Objetivo atingido, hoje assegura: “É preciso agradecer porque, não tenho dúvidas que, se não fosse pelo Embarque Digital, nunca teríamos a oportunidade de um ensino superior dessa qualidade e com esse suporte”.

(…)

Franklin chegava ao culto de Ação de Graças no bairro de Caixa d´Água, na Zona Norte do Recife,  para agradecer. “Eu precisava estar lá, que é minha origem”. Ele e a família moravam no alto de um morro, lugar de boa visibilidade, e de uma “maldição”, como conta: tudo que se escutava embaixo ecoava na parte superior.

Registro do Culto de Ação e Graças com amigos – Arquivo Pessoal

Os moradores não viam nada porque estavam dentro de casa, impelidos pelo toque de recolher imposto pela violência das redondezas. “Cresci até os dez anos no meio da criminalidade, ouvindo tiroteio toda semana e passando por boca de tráfico de drogas”. Terríveis estatísticas arrastaram alguns dos vizinhos de infância.

Quando ele estava com 11 anos, início do Ensino Fundamental anos finais, parte da sua família empenhou-se em mudar-se para o bairro de Campo Grande, no Recife. “Não é vergonhoso sair. É uma conquista e todos vibram comigo. Quando vou lá, e eu vou toda semana porque vou pegar meus sobrinhos, a vizinhança me recebe bem, me abraça. É lugar de rever amigos, como Carlão, Lucas, Luan, Marcos e Matheus. Uma vez cheguei e a diretora da Escola Bárbara Cibelli me pediu para tirar uma foto. Achei engraçado e entendi como um orgulho dela”.

Desde criança, quando vivia no bairro de Caixa D’água, que ele vive conectado – Arquivo Pessoal

Fora do subúrbio – definição dada por Franklin, lembrando do conceito, da descentralização e das deficiências estruturais do antigo bairro, já em Campo Grande, no Recife, o vendedor do pão não passava mais na porta da casa dele. Agora, era preciso ir à padaria. Ali, as pessoas mal se cumprimentam (muito menos participavam ou sabiam da vida dos vizinhos), a fachada das casas pareciam pálidas, com cerâmicas padronizadas – diferente dos muros de cores vivas do alto.

As portas eram, com frequência, fechadas, assim como as pessoas. A cultura e o custo de vida traziam desafios diferentes, mas a adaptação à mudança era tida como urgente e necessária. Precisava estudar mais próximo de um grande centro, descobrir brechas de ascensão profissional e social em meio a um universo vivido pelos que, como ele, sem recursos financeiros e sem network.

Carlos Franklin nos tempos de Ensino Médio – Arquivo Pessoal

“Você é jovem e gosta de tecnologia? Essa é a oportunidade para você!”, chamava a propaganda entre uma foto e outra do Instagram. Foi pouco antes de dormir no dia em que clamou a Deus. Correu os olhos para conferir os requisitos para a bolsa que lhe garantiria uma vida melhor, ele atendia a todos; e ver os prazos de inscrição, que se encerrava uma hora depois, naquele mesmo dia. Talvez fosse um sinal pensou. “Aí eu cliquei, anexei documentos, fechei a aba, esperei por duas semanas o resultado”. Não estava ansioso para vê-lo, garante. Quando constatou seu nome na listagem final dos selecionados, foi quase inacreditável. Festa em casa.

Há mais de dois anos, Carlos Franklin, 23 anos, engrossa o elenco formado por centenas de jovens de escolas públicas do Recife que se tornaram estudantes do ensino superior do Programa Embarque Digital. O Embarque Digital oferece bolsas gratuitas e integrais e está na 5ª turma. Até então, já selecionou 1.150 jovens para o programa, com graduações totalmente financiadas pela gestão municipal e aulas em instituições do ensino superior, como a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), a Faculdade Senac, o Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau), a Faculdade Imaculada Conceição do Recife (FICR) e o Centro Universitário Tiradentes (Unit Pernambuco). 

 É uma conquista revisitada hoje pela cena do primeiro dia de aula. “Eu estava ansioso, mas quando me encontrei com pessoas que saíram do mesmo lugar que eu, vi a minha representatividade lá e fiquei mais tranquilo”.

Hora da foto com a turma do Embarque Digital e o sorriso entrega a satisfação – Arquivo Pessoal

De volta às aulas na Faculdade Senac no início desta semana, Carlos Franklin vem celebrando à sua maneira (frente ao computador) o Dia do Estudante, nesta sexta-feira 11 de agosto, e um mês em que se reaviva um direito conquistado em 11 de agosto de 1927. Um direito que milhares de jovens, muitos talentosos, ainda sonham alcançar e pelos quais há uma luta permanente, envolvendo inclusive Franklin. Há três meses, ele usou o Linkedln para anunciar o orgulho e satisfação de integrar a CPA (Comissão Própria de Avaliação) da Faculdade Senac PE como representante dos discentes.  

O ANÚNCIO EM VÍDEO

Por vezes, Franklin duvidou da sua própria capacidade. Titubeou diante de alguns “nãos”. Nunca parou. Tinha “propósito”, frisa: ascender e oferecer uma vida melhor para os pais. Fosse vendendo doces e bolos nas paradas de ônibus ou na sala de aula, destacando-se como representante, imaginando ser notado de alguma forma. Aliou a esperança e a perseverança.

Antes mesmo das primeiras conquistas profissionais, e elas já começam a surgir, compartilhou com amigos de Caixa d´Água as alegrias de se tornar um graduando de tecnologia.  Como acontece entre amigos para os quais não se precisa de filtros, gravou um vídeo com o anúncio: “O pirra agora é analista e desenvolvedor de sistemas. Super silêncio [pausa, dedo em riste em posição perpendicular sobre a boca]. Esqueça tudo”, brincou, pouco antes de efetivar a matrícula na faculdade, com irreverência e êxtase, posando defronte a uma placa neon.

O “pirra” da foto virou estudante de tecnologia

“Pirra”, para quem desconhece, é uma gíria juvenil dos anos de 1990, usada em terras pernambucanas. Vem de “pirralho”, sinônimo de meninote. Ele parece amar o seu passado. Comenta-o com sorriso incontido, inclusive dos momentos mais difíceis, como se passeasse por suas boas lembranças. É como uma jornada do herói detalhada e personalíssima.

Recife e a Rua São Félix, em Campo Grande, foram se ajustando a Carlos Franklin e à família, que mantêm a tradição de dar nova cor à fachada da casa todo final do ano e em 2023 vive sob a inspiração do azul. Questão identitária, de preservação de raízes bem fincadas. “Muitas conquistas se deram porque eu morava aqui. Fui conhecendo as coisas, estudando no centro. Na comunidade, a gente é esquecido”. Foi no chão desta casa que, em 2021, o jovem clamou a Deus e cedeu à intuição e aos disparos do anúncio para o Embarque Digital que apareciam entre vídeos de YouTube, que ele assistia na tela do seu smartphone.

Aos 23 anos, Carlos Franklin se junta a centenas de jovens de escolas públicas do Recife que se tornaram estudantes do ensino superior do Programa Embarque Digital. O Embarque Digital oferece bolsas gratuitas e integrais e está na 5ª turma

Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados

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