Estamos vivendo um momento de transformações cada vez mais rápidas e neste texto vamos viajar pela temática dos dados pessoais, como eles estão sendo captados em massa por plataformas digitais e como tudo isso nos leva para um cenário de grandes mudanças anunciadas em outras obras literárias, musicais e cinematográficas. Tomei a liberdade de escolher um título que remetesse a uma viagem que vai abordar uma série de tópicos, em princípio, não tão conectados. Espero que gostem!

Foto: NASA/Unsplash

MULTA PESADA RESOLVE?

A semana começou com mais um gigante sendo fortemente golpeado pelo uso indevido de dados pessoais na Europa. A Meta, empresa controladora do Facebook, foi multada em um valor recorde de €1,2 bilhão (US$1,3 bilhão) pela Comissão de Proteção de Dados (DPC) da Irlanda por mau uso de informações de usuários. A multa foi imposta por uma violação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia, a maior multa de privacidade já aplicada pelo bloco, superando a penalidade recorde anterior de €746 milhões imposta à Amazon em 2021​.

A DPC também ordenou que a Meta suspenda a transferência de dados do usuário da UE para os EUA, dando à empresa cinco meses para cumprir. Além disso, a Meta recebeu um prazo de seis meses para interromper “o processamento ilegal, incluindo armazenamento, nos EUA” de dados pessoais da UE já transferidos para o outro lado do Atlântico. A decisão não afeta as transferências de dados nas outras principais plataformas da Meta, Instagram e WhatsApp.

As regulamentações de proteção de dados visam proteger a privacidade e a integridade das informações pessoais dos indivíduos. Elas estabelecem regras rígidas para a coleta, o armazenamento, o processamento e a compartilhamento de dados pessoais. A regulação também dá aos indivíduos o direito de conhecer e controlar como seus dados são usados.

Houve uma série de casos onde o uso de dados pessoais de modo não autorizado ou sem consentimento foi questionado, sendo o mais famoso exposto pelo ex-analista da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), Edward Snowden, há quase 10 anos, em junho de 2013, quando ele mostrou evidências de coleta de dados pessoais de cidadãos americanos pela Agência de Segurança Nacional (NSA) para vigilância não consentida. No vídeo a seguir há um trecho da entrevista que Snowden concedeu para jornalistas do The Guardian e do Washington Post, em Moscou – onde está exilado até hoje.

Um filme, inspirado em fatos reais, foi produzido em 2016 pelo diretor Oliver Stone, onde a história é contada sobre a versão de Snowden, o qual foi considerado um traidor pelo governo norte americano e cujo trailer pode ser visto a seguir.

Entretanto, qual é a relação entre o caso Snowden e o caso Meta? Ambos tratam da coleta massiva de dados pessoais não autorizadas, ou melhor, não “conscientemente” consentidas, pelo menos no passado [será mesmo?], pelas plataformas digitais presentes no nosso cotidiano. Digo “não conscientemente” pois, muitas vezes, os termos de uso vêm em letras “minúsculas” e em momentos onde nós, usuários, estamos compelidos a usar os aplicativos que não paramos para ler atentamente os termos.

Imagem criada artificialmente

CONSUMIDOR OU CONSUMIDO?

Um mantra se tornou realidade e foi repetido por diversas pessoas: “se você não paga pelo produto, o produto é você!”. A primeira referência que encontrei com menção a esse tema foi feita por Richard Serra em 1973 – “Television Delivers People” –  que está publicada na página do Museu de Arte Moderna da Nova York, no qual Richard falava que a televisão entregava pessoas em massa para os anunciantes.

Diversos serviços disponibilizados na modalidade freemium, isto é, com um conjunto de funcionalidades grátis e outras premium, envolvem a coleta de dados ou informações sobre os consumidores para estudar comportamento e fornecer para potenciais anunciantes. 

Esse é um tema antigo mas que continua moderno: em 2013, usuários reclamam dos anúncios colocados no topo da lista de emails da caixa de entrada. Recentemente, parece que para um conjunto de usuários, essa prática voltou mas, nesse momento, no meio da caixa de entrada no grupo “Promotions”, haja vista essa recente reportagem sobre anúncios no Gmail pela revista americana The Verge

Como já dizia Milton Friedman – “There is no such thing as a free lunch!” / “Não tem almoço”grátis!” – desta forma, é compreensível a busca por modelos de negócio que permitam o oferecimento de produtos e serviços digitais gratuitamente para os usuários e que possam ser geradas receitas oriundas do comportamento dessa massa de usuários, correto? 

O principal dilema é o seguinte: até que ponto essas análises são individualizadas? Há, de fato, anonimização ou estamos sendo rastreados como descreveu George Orwell no best seller  “1984”? Há quem diga que vivemos, de fato, sob a vigilância de vários “Big Brothers”, que vivem nos manipulando em troca de nossa atenção.

Afinal, quem consegue manter a atenção da maior massa de pessoas, tem maior poder de barganha para ofertar anúncios. Sim! O mesmo modelo de negócios apontado por Richard Serra em 1973! Esse tema é abordado em detalhes no documentário “O Dilema das Redes” produzido pela Netflix em 2020, cujo trailer está a seguir:

Nesse documentário, temos ex-funcionários de plataformas digitais descrevendo como os algoritmos de oferta de conteúdo são construídos de forma a maximizar a atenção dos usuários, a partir de dados e informações obtidas das nossas interações como usuários das mesmas. É uma história e tanto e vale a pena ver para entender ainda mais como nossos dados são registrados em massa.

QUEM VIGIA OS VIGILANTES?

É como se alguém nos guiasse pelo espelho como Alice em “Alice Through the Looking Glass” e nos mostrasse um novo olhar sobre a realidade do mundo digital em que vivemos. Assim como no livro e no filme, Alice aprende que não pode mudar o passado mas pode aprender com ele para mudar o futuro. O que será que podemos aprender com todos esses casos de uso dos nossos dados e como podemos mudar isso?

Imagem: Wikimedia Commons

Será que, no futuro, teremos maneiras mais eficientes e confiáveis de proteger nossos dados, ou melhor, de gerenciá-los, compartilhá-los e até mesmo gerar receitas a partir deles?

Sim, é isso mesmo que você leu! Se nossos dados estão sendo comercializados de alguma forma, é porque geram valor para os interessados. Vimos como o Spotify, a partir de sua plataforma e com a disponibilidade de redes móveis em abundância, reduziu bastante o impacto da pirataria no mercado de música digital em nosso artigo da semana passada.

Há interesse de muitos atores em aprender sobre nossos comportamentos, especialmente para mimetizar a forma como nós, humanos, nos comunicamos e como percebemos o mundo. Isso pode ser bom, pois já estamos conseguindo gerar a percepção de que agentes conversacionais treinados podem responder melhor e com mais empatia a perguntas feitas em uma plataforma digital, conforme observado no estudo publicado no mês passado no periódico JAMA Internal Medicine

Como disse Gil Scott-Heron no poema / canção  “The Revolution Will Not Be Televised” em 1970:

“(…) The revolution WILL put you in the driver’s seat

The revolution will not be televised 

WILL not be televised, WILL NOT BE TELEVISED

The revolution will be no re-run brothers 

The revolution will be live (…)”

A revolução não está sendo televisionada, a revolução está acontecendo ao vivo, em tempo real, e estamos sentados no assento do motorista. Será que estamos guiando a revolução ou sendo guiados? O que acham? 

Estamos vivenciando, em massa, em tempo real, agora de forma mais amplificada com o advento de ferramentas como o chatGPT, o Midjourney, o DallE e muitas outras, como a tecnologia está potencializando a nossa produtividade e como os sistemas estão conseguindo aprender a partir de contextos. Inclusive, tem um levantamento interessante feito por Silvio Meira, André Neves, Filipe Calegario e outros autores no ebook gratuito disponível nesse link. Vamos discutir essa temática em mais detalhes em nossos próximos artigos, ok? Comenta e compartilha nas redes sociais, beleza?

Fernando Sales é professor do Departamento de Engenharia Biomédica da UFPE e Pesquisador do Porto Digital

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