José Luiz da Mota Menezes, um dos maiores conhecedores da evolução urbana do Recife, costumava dizer que o tecido urbano do Centro da cidade sofreu três grandes mutilações durante a história.

A primeira ocorreu nas reformas do Bairro do Recife (1911-1926), que, além das necessárias melhorias no Porto, colocou abaixo todos casebres coloniais para dar lugar aos atuais edifícios ecléticos.

A segunda ocorreu na abertura da Avenida Guararapes, em Santo Antônio, entre o final dos anos 1930 e o começo dos anos 1940. Essa intervenção destruiu dezoito quarteirões, incluindo prédios do século 17 e 18. 

A terceira foi a mais polêmica: a abertura da Avenida Dantas Barreto, entre Santo Antônio e São José.

Avenida Dantas Barreto
Abertura da Av. Dantas Barreto com a Igreja dos Martírios ainda de pé no meio da avenida, em 1973 – Crédito: Alcir Lacerda

Curiosamente, essa também foi a mais longa: começou a ser aberta pouco depois da finalização da Guararapes, mas as suas etapas ultrapassaram décadas, gestões e regimes políticos (Era Vargas, democracia e ditadura militar), sendo encerrada em 1973. E é sobre esse último processo que trataremos no texto. 

Em busca da modernidade

Avenidas Guararapes e Dantas Barreto
Santo Antônio antes das reformas das Avenidas Guararapes e Dantas Barreto, ano desconhecido – Crédito: Fundaj

Todas essas alterações se aglutinam em um mesmo sentimento de modernidade do início do século passado. A chegada dos bondes elétricos e o aumento de automóveis mudaram como nunca o cotidiano de cidades como o Recife.

Neste contexto, o poder público entendia que o velho deveria dar espaço ao novo. Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, esse sentimento ganha ainda mais fôlego com o surgimento do nosso primeiro estado moderno. Foi na gestão de um político ligado ao Estado Novo que a Avenida Dantas Barreto começou: o prefeito Antônio Novaes Filho (1937-1945).

Construção de prédios da Avenida Guararapes, no começo dos anos 1940 – Crédito: Desconhecido

A ideia de criar uma avenida que cortaria os bairros de Santo Antônio e São José já existia desde a primeira década do século 20, com intuito de ligar a atual Praça Sérgio Loretto à Praça da República. Até a década de 1930, diversos planos urbanísticos foram apresentados.

Demolições

As demolições para a abertura da Dantas Barreto começam de fato em 1943, num trecho entre a Praça da República e a atual Avenida Guararapes. No ano seguinte, foi desapropriada a igreja de Nossa Senhora do Paraíso para a continuação das obras, sendo demolidos outros edifícios históricos que formavam o antigo Pátio do Paraíso.

Pátio do Paraíso
Pátio do Paraíso, no Recife, anos 1930 – Crédito: Arquivo Nacional

Ainda foram demolidos edifícios históricos como o Hospital São João de Deus (1686) e o Quartel do Regimento de Artilharia (1786), reduto da Revolução de 1817.

Um segundo trecho, entre a Praça da Independência e a Praça do Carmo, é iniciado no ano seguinte. O projeto previa uma faixa de tráfego de 32 metros de largura, fazendo a ligação da Praça da República à Praça do Carmo.

“Logo terminem as demolições dos restantes prédios para alargamento da Praça da Independência, iremos dar início às obras da Avenida Dantas Barreto, fazendo desaparecer os becos infectos, as casinholas modestas, para que a nova artéria, que será o orgulho do meu Recife, comece a crescer para prestígio da cidade”, escreveu Novaes Filho no “Folha da Manhã”, principal veículo do Estado Novo.

Demolição Rua Nova e a Praça do Carmo
Demolição entre a Rua Nova e a Praça do Carmo, na Administração Pelópidas Silveira, em 1946 – Crédito: Desconhecido

Porém, Novaes Filho não concluiu a Avenida, fazendo apenas demolições. Em 1946, a gestão de Pelópidas Silveira retomou as demolições e sumiram prédios de ruas que já não conhecemos: Sigismundo Gonçalves, Trincheiras, Estreita do Rosário e Laranjeiras.

A Dantas Barreto atravessou a década de 1950 e 1960 ainda representando uma ideia de modernidade, enquanto a arquitetura colonial era vista como resquício de atraso. Um terceiro trecho proposto seria entre a Praça do Carmo e a Praça Sérgio Loreto, com 50 metros de largura, atingindo direta e indiretamente uma área de quase 4 km².

Dantas Barreto
Abertura da Avenida Dantas Barreto – Crédito: Desconhecido

Com essa última etapa, a ideia era fazer uma ligação do centro à Zona Sul, que já abrigava as classes abastadas, sendo a área com o maior número de automóveis da cidade.

Para efetivar este novo traçado, no entanto, seria demolida a Igreja do Bom Jesus dos Martírios, construída entre 1791 e 1796, com fachada de estilo rococó, sendo a única igreja do Brasil totalmente construída por negros escravizados. Na década de 1970, entretanto, as discussões sobre preservação do patrimônio histórico já haviam avançado.

A Batalha dos Martírios

Fachada da Igreja dos Martírios
Fachada da Igreja dos Martírios, que foi demolida para o alargamento da Avenida Dantas Barreto, em 1968 – Crédito: Arquivo DP D.A Press Brasil

A finalização da Avenida Dantas Barreto ocorreu na segunda gestão de Augusto Lucena (1971-1975), que tinha como dilema consolidar o Recife como metrópole regional e inseri-lo na dinâmica do “milagre econômico” do regime militar.

Esse perfil de gestão resultou em um confronto com quem se opusesse à conclusão da via, o que ocorreu por conta da Igreja dos Martírios. Esse embate público entre personalidades, intelectuais e autoridades do Estado, reunidos em grupos de interesses opostos, foi apelidado de “Batalha dos Martírios”.

Entre os defensores da igreja estavam Ariano Suassuna, Leonardo Dantas Silva, Nilo Pereira, Marcos Vinicios Vilaça (presidente da Academia Pernambucana de Letras), Lúcio Costa e José Luiz da Mota Menezes (citado no começo do texto).

Obra da Avenida Dantas Barreto em vista aérea do Recife
Obra de abertura da Avenida Dantas Barreto em vista aérea do Recife, com Igreja dos Martírios ainda de pé – Crédito: Arquivo DP

Eles apontavam para o valor histórico da construção, defendendo o seu tombamento junto ao IPHAN. Alguns projetos de desvio foram apresentados, mas todos descartados por Augusto Lucena.

Entre os defensores da demolição estavam, além do prefeito, os historiadores Flávio Guerra e Alfredo Carlos Schmalz, o colunista social José de Alencar (Alex), mais da metade da bancada de vereadores da Câmara Municipal e da bancada de deputados da Alepe, além da classe patronal e empresarial.

Esses argumentavam sobre uma suposta ausência de expressão histórica e artística; questionavam o porquê de tamanho interesse na igreja, sugerindo uma conspiração; e apontavam a degradação física do prédio.

Dantas Barreto - Igreja dos Martírios
Fachada da Igreja dos Martírios já em demolição para alargamento da Avenida Dantas Barreto, em 1972 Crédito Arquivo DP

A discussão acalorada tomou conta do debate público, dividindo a opinião da cidade. Os defensores da demolição ganharam um nome de peso: Gilberto Freyre, que era membro do Conselho Federal de Cultura, que através da sua Câmara do Patrimônio Histórico Nacional podia manter ou suspender tombamentos de prédios.

O embate chegou até a Presidência da República: em 1972, Emílio Médici assinou um decreto que autorizou o cancelamento da inscrição do tombamento do prédio no Livro de Tombo do IPHAN. Em 23 de janeiro de 1973, as máquinas colocaram abaixo a Igreja dos Martírios.

Obras da construção da Av. Dantas Barreto
Obras da construção da Av. Dantas Barreto na década de 1970 – Crédito: Arquivo DP

A Avenida Dantas Barreto foi oficialmente inaugurada em setembro de 1973, com pompas de carnaval fora de época. Não demorou muito para ficar evidente como as autoridades estavam equivocadas em seus planos. A via que acabou protagonizando a função de ligação do Centro com a Zona Sul foi a Avenida Agamenon Magalhães, inaugurada também nos anos 1970. 

Também é da autoria de José Luiz da Mota Menezes, citado no começo do texto, um ditado muito famoso que resume a controvérsia dessa via: “É uma avenida que liga nada a lugar nenhum”.

Dantas Barreto Aérea
Com 1,6 Km, a Dantas Barreto não alcançou o perfil moderno proposto na criação – Crédito: Pedro Américo Correia

Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio

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