A ocupação de um prédio ou construção histórica para um serviço, mesmo que diferente do propósito inicialmente pensado, é uma ótima forma de fazer com que o espaço não desapareça. A escolha do Bairro do Recife para receber o parque tecnológico urbano do Porto Digital, por exemplo, carrega bastante desse tipo de pensamento.

Cidade que nasceu e cresceu em função do comércio portuário, o Recife teve, ao longo da história, diversas fortificações para proteção dessas atividades. A presença conflitante dos holandeses, entre 1630 e 1654, acabou reforçando a existência dessas construções.

Infelizmente, nem todos os fortes chegaram aos nossos dias, a exemplo do Forte do Buraco (ou Forte de Madame Bruyne), que ficava ao norte do Bairro do Recife como reduto para defesa dos holandeses, mas, já bastante degradado, foi demolido nos anos 1950 para uma futura obra na Marinha que nunca saiu do papel.

Forte das Cinco Pontas
O velho Forte do Buraco, de Henrique Martins (1914)

Um deles, no entanto, conseguiu atravessar os séculos como um bem conservado da cidade e um dos raros exemplares de construção militar holandesa no Brasil: o Forte das Cinco Pontas. E isso ocorreu porque ele teve diversas funções ao longo da história, sendo, atualmente, o Museu da Cidade do Recife.

Construção

Corria o ano de 1630 quando, à beira do Rio Capibaribe, pelas bandas da antiga Campina da Taborda, o povo do Recife viu se erguer um novo forte, com um fosso gigante e forma pentagonal. Era uma construção dos holandeses, que haviam acabado de concluir sua invasão às terras.

Ele foi denominado de Frederik Hendrik em homenagem ao Príncipe de Orange, seu idealizador. Contudo, de nada adiantou o nome imposto pelos flamengos. A forma curiosa do quartel, semelhante à de uma estrela, logo recebeu um nome popular: Forte das Cinco Pontas.

Forte das Cinco Pontas
Forte das Cinco Pontas em mapa de 1655 – Crédito: Desconhecido

Essa localidade foi escolhida pois ficava em uma área próxima às cacimbas de água potável de Ambrósio Machado, um rico senhor de engenho da ilha de Antônio Vaz. Ainda em 1630, ainda antes da sedimentação das estruturas de taipa, o Forte recebeu um violento ataque de tropas nativas lideradas por Felipe Camarão mas os holandeses resistiram e concluíram a obra.

Após a expulsão definitiva dos flamengos, em 1654, os portugueses ocuparam o forte, sob comando de  Vidal de Negreiros e do general Barreto de Menezes, e mudaram o seu nome para Forte São Tiago. O povo, já acostumado, acrescentou o “das cinco pontas”.

Outras funções

Após tantas batalhas, a antiga edificação de taipa reclamava por reformas. Em 1677, Fernandes Vieira o destruiu completamente para, em seguida, o reerguer em alvenaria, no mesmo local e desta vez com apenas quatro pontas, seguindo um modelo mais comum das edificações de guerra – por isso o forte tem apenas quatro pontas, embora o seu nome continue o mesmo.

Daí em diante, o forte continuou a defender a cidade com ocupação militar, abrigando quartéis e prisões. Por volta de 1817, abrigou a sede do Quartel General Militar.

Antigamente, o forte possuía espaços subterrâneos que serviam de prisão, mas eles foram demolidos no ano de 1822. No pátio interno ainda existe, no entanto, várias celas com grades pesadas, feitas em ferro, e um túnel oculto, planejado para os holandeses fugirem, caso sofressem uma invasão.

Museu da Cidade do Recife
Forte das Cinco Pontas nos anos 1970 – Crédito: Iphan

Em 1977, o Exército desocupou o forte, que já não era mais adequado para abrigar tropas. O governo federal, através da Secretaria de Planejamento (Seplan) da Presidência da República, promoveu uma restauração da fortaleza, que já era considerada patrimônio pelo Iphan desde 1938.

A restauração foi feita com uma minuciosa pesquisa arqueológica nos diversos elementos da construção (terraplano, paredes, túneis, rampas, escadas, fosso e mais). A construção adequou-se, então, para receber a sede regional da Seplan, que ali permaneceu até 1981.

O museu

No começo da década de 1980, a preocupação já não era mais a permanência na “terra conquistada” ou a necessidade de água potável, mas sim memória de uma cidade já quadricentenária, que necessitava de um organismo que estudasse, preservasse e continuasse vigilante pela sua história.

Em uma ação conjunta da Secretaria de Planejamento da República, do Governo do Estado e da Prefeitura do Recife nasce, então, o projeto do Museu da Cidade do Recife no forte.

Museu da Cidade do Recife
Notícia no Diario de Pernambuco em 23 de novembro de 1980 – Reprodução

O ministro Delfim Neto destinou 50 milhões de cruzeiros para a constituição inicial do acervo que teria, basicamente, pelas iconográficas provenientes do Estado e da Prefeitura, de coleções particulares e de outros documentos levantados no Brasil e no Exterior – através de pesquisa junto a Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Nacional Ultramarino e instituições semelhantes na Holanda e Espanha.

Antes do Forte, no entanto, um outro local foi cogitado para esse equipamento cultural. A coluna de Paulo Fernando Craveiro veiculou, em 1979, que o antigo prédio da Prefeitura do Recife iria abrigar o Centro Cultural da Aurora, sendo instalado o Museu da Cidade do Recife e o Museu do Carnaval.

Museu da Cidade do Recife
Anúncio do Diario de Pernambuco em 13 de janeiro de 1982 – Reprodução

“Melhor destino não poderia ter a grande fortaleza, que assistiu o esplendor do império neerlandês e, também, sua morte, na Campina do Taborda, o ponto final da mais perigosa tentativa de esfacelamento geográfico do Brasil”, dizia o editorial do Diario de Pernambuco no dia da inauguração do Museu da Cidade do Recife, 13 de janeiro de 1982.

“Espera-se e confia-se que uma tal significação não se frustre em depósito de antiqualhas, por mais gloriosas que sejam. Mas, que se dinamize como verdadeiro centro cultural, ágil e moderno, suas coleções servindo de suporte e apoio para o estudo, a análise, uma melhor compreensão do homem e da terra”, continuou.

anúncio Museu da Cidade do Recife
Trecho de anúncio do Teatro do Forte, no Museu da Cidade do Recife, em 1982

Em 13 de janeiro de 1982, a inauguração foi celebrada com o espetáculo “O Calvário de Frei Caneca”, que foi apresentado nas ruas do Recife para mostrar ao povo uma visão didática do papel histórico que o mártir da Confederação do Equador desempenhou na vida política do Brasil. O governador Marco Maciel e o prefeito Gustavo Krause estiveram presentes.

Nessa época, inclusive, existia o “Teatro do Forte”, localizado dentro do museu, sendo uma boa novidade para grupos teatrais. “O Museu da Cidade assume, desse modo, um papel que poderá ser da mais alta rentabilidade, tornando-se um polo de estudo e trabalho, capaz de ajudar o Recife a reconquistar a posição de prestígio intelectual, infelizmente, perdida”, registrou o Diario de Pernambuco em 7 de maio daquele ano, dias antes da inauguração.

Calvário de Frei Caneca
Registro do espetáculo O Calvário de Frei Caneca – Crédito: Diario de Pernambuco

Digitalização de acervo fotográfico

Atualmente, o acervo arqueológico do Museu da Cidade é formado por 9.875 itens. Já o acervo cartográfico abrange um total de 1.898 peças, incluindo mapas, projetos urbanísticos, projetos arquitetônicos e de mobiliário, cartazes, gravuras, entre outros itens datados do final do século 19 e quase todo o século 20.

O seu acervo fotográfico é formado por mais de 200 mil imagens sobre o Recife do século 19 até a década de 1980 e está dividido em negativos flexíveis, de vidro e slides. 

Aproveitando o desenvolvimento tecnológico, com capacidade de expandir e democratizar o acesso à informação, o museu lançou, neste mês, a digitalização de uma grande parte de seu acervo – 126 mil itens.

Museu da Cidade do Recife
Forte das Cinco Pontas em data desconhecida – Crédito: IBGE

O projeto Acervo Digital Museu da Cidade do Recife – Fotografia disponibilizou um conjunto formado por versões fac-similares, em formato PDF, dos 67 livros de tombo da coleção fotográfica do museu, organizados pela instituição desde a inauguração.

São fichários que medem 28 x 41 cm, contendo as cópias fotográficas coladas em suporte de papel e acompanhadas de informações sucintas sobre cada uma das imagens, como número de registro, descrição, autor e ano, totalizando 5.600 páginas de conteúdo.

Cada fichário, extensos e variados conteúdos contemplam imagens que retratam construções, eventos, paisagens, serviços públicos, festas, tipos populares, vistas aéreas, demolições e costumes.

O trabalho de pesquisa e digitalização foi idealizado pelo pesquisador e fotógrafo Josivan Rodrigues junto à equipe do museu. Assim, o icônico forte segue prestando serviços para Pernambuco, Brasil e todo o mundo.

Para acessar o conteúdo, basta clicar aqui.

Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio

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