Cais do Porto, do Apolo, da Alfândega, da Aurora, de Santa Rita, do Imperador… O desenvolvimento do Recife a partir da atividade portuária, além do protagonismo do Capibaribe no cotidiano urbano, nos rendeu diversos pontos que marcam as margens do rio e os antigos pontos de embarque de passageiros.

Cada nome de cais carrega uma história. Um deles, no entanto, é pouco lembrado ou até mesmo conhecido pela população: o Cais José Mariano, localizado entre a Rua Dr. José Mariano e a Ponte Velha, na Boa Vista. Atualmente, ele comporta diversos empreendimentos como madeireiras, marcenarias e casas de ferragens.

Poderíamos dizer que o Cais José Mariano marca uma espécie de divisa entre os bairros da Boa Vista, um centro comercial, e dos Coelhos, uma periferia. Na primeira metade do século 19, o bairro dos Coelhos era uma aglomeração pertencente à Boa Vista, próxima ao chamado Parque Capibaribe (atual Ilha do Leite). 

Cais José Mariano
Cais José Mariano na atualidade, pelo Google Street View

Já nessa época, a aglomeração era inteiramente degradada. Lá vivia uma população marginalizada que habitava em palafitas, coberta de manguezais, formando milhares de “mocambos” – antiga denominação para habitações precárias. 

Histórico do Cais José Mariano

O Cais José Mariano começou a ser ocupado na década de 1920. Antes, neste local, se encontrava o cemitério dos Judeus, um matadouro da época colonial, e um sítio frutífero que pertencia à família Coelho Cintra.

As primeiras aparições do Cais José Mariano na imprensa datam da década seguinte, principalmente porque o Cais entrou no itinerário da Pernambuco Tramways & Power Co. Ldt (leia sobre a primeira linha férrea do Nordeste), que operava os bondes elétricos da cidade.

Cais José Mariano
Anúncio da Pernambuco Tramways no Jornal Pequeno, em 1933, com o Cais José Mariano no último tópico

Ainda na década de 1930, outras importantes instituições passaram a movimentar ainda mais esse trecho, como a Loja Maçônica Cavaleiros da Cruz, a Associação dos Empregados do Comércio e a Academia do Comércio de Pernambuco.

Embora seja pouco lembrado, os dois clubes de futebol mais antigos do Estado em atividade tiveram sedes nesse Cais: Náutico e Sport. As sedes ficam em um cais, próximas do rio, pois os clubes ainda tinham um maior enfoque no remo, modalidade praticada pela aristocracia no começo do século passado.

O texto “Brasão das Grandes Vitórias”, publicado por Jorge Brennand no Diario de Pernambuco em 28 de março de 1950, relembra um interessante caso sobre o Sport: “O aluguel da sede estava atrasado meses e mais meses. Os barcos cheios de remendos, pontilhados de esparadrapos, eram medalhas morais de imensas vitórias náuticas. O dono do prédio não era nada rubro negro, moveu uma ação de despejo. O Sport foi despejado”.

O Cais em três fotos

Podemos acompanhar a evolução do Cais José Mariano através de alguns registros fotográficos. O mais antigo deles, de Manoel Tondella, de 1905, mostra um cais bastante diferente do que conhecemos atualmente: ainda organizado, com poucas construções, antes do “boom” populacional que o Recife não conseguiu abarcar.

Cais José Mariano
Cais José Mariano em 1905, por Manoel Tondella – Crédito: Brasiliana Fotográfica

Já nos anos 1940, o Cais José Mariano era alvo constante da coluna “Cousas da Cidade”, do Diario de Pernambuco, que, dentro muitos temas, opinava sobre urbanismo. Em 6 de março de 1940, o texto “O Abandono do Rio” denuncia que um prolongamento desse cais foi descontinuado, explicando, talvez, o motivo do seu esquecimento ao longo das décadas.

“Aqui, o rio teve sua fase de esplendor, mas acabou sendo mais um escoadouro para despejo. Todos os cais suburbanos estão destruídos. Olhe-se o rio da Ponte Velha: é uma tristeza. Lentamente foi-se conquistando terra firme ao rio, por meio de aterros – aterros de lixo – e acabaram construindo sobre esses aterros, quando o Cais José Mariano deveria prolongar-se até os Coelhos. Estrangularam-se o cais e mutilaram o rio”, registra.

“Do lado da Rua da Aurora, passada a ponte pequena, o que se vê é o rio abandonado e os cais destruídos. Tudo se teria evitado, se houvesse um plano, dentro do qual a cidade logicamente evoluído.”

Nos anos 1940, uma foto de Benicio Dias mostra uma realidade próxima do relato da coluna. O Cais já aparece com um emaranhado de casebres e com um espaço mais estreito para circulação de pessoas.

Cais José Mariano por Benício Dias em 1941, via Fundaj

Em 5 de maio de 1942, no texto “Alargamento da Rua da Aurora”, a seção “Cousas da Cidade” comenta um alargamento que iria da Ponte da Boa Vista até a ponte do Santa Isabel, avançando cinco metros sobre o rio.

“É uma pena que os limitados recursos municipais não permitam que se execute um plano de envergadura, que daria realmente grande beleza à cidade, num de seus trechos mais característicos. Todo o braço do Capibaribe, que vai do Pedro II e se prolonga até o fim da Rua da Aurora, é de grande efeito paisagístico, mas a ausência de um plano tem estragado tudo.”

“Quanto não gastará a Municipalidade com a desapropriação do trecho do Cais José Mariano, onde administrações anteriores prometeram construir sobre uma zona de aterro, que devia ser destinada ao prolongamento do cais?”, registra, mais uma vez, cobrando a continuidade do local.

Em 1966, uma foto de autoria desconhecida do Diario de Pernambuco mostra um trecho entre o Cais José Mariano e a Ponte Velha. Chaminés convivem com os casarões, além de bananeiras e um muro rompido. Homens sem camisa estão no repouso do trabalho.

Cais José Mariano em 1966, em registro do Diario de Pernambuco (autor desconhecido)

A fotografia registra um ocorrido incomum: a explosão de uma dinamite feita para reparo no sanitário público  do Departamento de Saneamento do Estado do Cais provocou pânico entre os populares nas imediações. “Não foi um ato de terrorismo, mas a falta de precaução com que se fez explodir a dinamite, em pleno dia e sem isolamento do local, poderia ter registrado consequências fatais”, noticiou o “Diario”.

Naquele mesmo ano, o Cais sofreu com as fortes chuvas de junho no Recife. A sua reconstrução de 280 metros custou aos cofres municipais 256 milhões de cruzados, conforme podemos ver na tabela abaixo:

Diario de Pernambuco em 3 de julho de 1966

Se hoje a área é conhecida pelas suas madeireiras, na década de 1980 um outro produto movimentou a economia do trecho: o papel. “A agitação no Cais José Mariano aumenta no fim das tardes, quando, ao lado das oficinas, pequenas lojas e bares, desenvolve-se um outro tipo de negócio: o comércio de papéis usados. Numa daquelas minúsculas transversais, está instalado um dos muitos depósitos que existem na cidade”, publicou o Diario, em dezembro de 1980.

Cais José Mariano
Papéis e papelões usados no Cais José Mariano, na década de 1980 – Crédito: Diario de Pernambuco

“A cada hora chegavam caminhões vazios para saírem carregados com destino certo a indústrias de papel. Lá, o ciclo se completa. O material é transformado em novas folhas de papel para embrulhos, caixas e todo tipo de invólucros”.

Merecida homenagem

Apesar de menos conhecido ou lembrado, o Cais José Mariano homenageia uma das personalidades mais importantes de Pernambuco no século 19, um abolicionista amado pelo povo. Filho de um tenente-coronel da guarda nacional, ele aderiu ao movimento abolicionista ainda na Faculdade de Direito, formando-se na mesma turma de Joaquim Nabuco. 

José Mariano
José Mariano – Crédito: Fundação Joaquim Nabuco

No Recife, José Mariano inaugurou uma nova forma de prática de falar em praça pública, defendendo a libertação de escravizados diretamente a pessoas de quaisquer classes sociais, contrariando políticos tradicionais, que só discursavam nos salões nobres. Logo ele se elegeu deputado-gerado com votos de pequenos comerciantes do bairro de São José.

Mariano integrou o grupo clandestino Clube do Cupim, formado por ativistas liberais de pelo menos 13 províncias. Eles conseguiam dinheiro e reuniam documentos para cartas de alforria, além de ajudar na fuga de pessoas escravizadas para outros Estados.

Hoje, existe uma placa no número 615 da Avenida Conselheiro Rosa e Silva, nos Aflitos, marcando onde ficava a casa dos encontros do Clube. Nela, lê-se: “Neste local existiu a casa demolida em 1977, onde o Clube Cupim abrigava escravos antes de transportá-los para lugar seguro, durante a campanha abolicionista. Memória do Instituto Arqueológico”. A placa original encontra-se sob guarda de um museu da cidade. A placa no local é uma réplica.

Placa do Clube do Cupim
Placa do Clube do Cupim – Crédito: Mara Ligia Scotton

José Mariano também dá nome a um dos prédios mais importantes do Centro do Recife: a Câmara de Vereadores, em Santo Amaro.

Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio

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