Em uma cidade cortada por rios, pode ser difícil cravar qual a ponte mais significativa ou importante. No Recife, no entanto, podemos apontar qual a mais pitoresca: a Ponte da Boa Vista, popularmente conhecida como Ponte de Ferro, criada para ligar duas importantes artérias do Centro: a atual Rua Nova, no bairro de Santo Antônio, à Rua da Imperatriz, na Boa Vista.
Isso se deve a sua estrutura singular, à riqueza de informações em suas pontas, que guardam placas comemorativas de datas importantes para Pernambuco, ou mesmo pelo seu protagonismo na história da cidade.
Apesar de sua estrutura metálica, a Ponte da Boa Vista foi de madeira, na maior parte do seu tempo de existência. Em 1640, a estrutura foi erguida a mando de Maurício de Nassau durante o período em que o Recife foi a capital do Brasil holandês.
Essa construção ia da frente do Palácio da Boa Vista (onde hoje se encontra o Convento do Carmo) até a altura do local onde foi construída depois a Casa de Detenção, atual Casa da Cultura.
Essa primeira ponte resistiu por um século, até que foi demolida, dando lugar à construção de uma outra, no mesmo local, pelo governador Henrique Luís Pereira Freire (1737-1746), o futuro Barão de Lucena. Dessa vez, foram incluídas grades de ferro e bancos que ficaram bastante famosos. Neles, discutia-se desde política até à vida alheia.
“Ali reúnem às tardes, gamenhosos benquistos, políticos, jogadores, cavalheiros de indústria; por ali passeiam as mulatas, de sapatinhos de cetim branco. Nas noites de lua é que as senhoras da sociedade se animam a sair e gozar à vista panorâmica: ao norte a cidade e os outeiros de Olinda, ao sul o Capibaribe e o aterro dos Afogados”, dizia um texto de aniversário de 430 anos do Recife, no Diario de Pernambuco.
O ferro chega ao Capibaribe
A chegada do ferro foi como uma consequência do progresso do Recife, uma vez que o tamanho e peso crescentes dos carros de transporte de mercadorias e o aparecimento dos bondes de burro, em 1871, exigiram o planejamento de uma nova ponte que substituisse a de madeira.
A Ponte de Ferro foi projetada pelo engenheiro Francisco Pereira Passos e construída em contrato com a firma inglesa Watson & Smith, pela quantia de 41 mil libras, sendo encarregado de sua construção o engenheiro W. Rawlison. Abaixo, vemos a nota de autorização da demolição da antiga ponte, assinada pela Watson & Smith, no Diario de Pernambuco, em 1873.
Existe uma curiosa lenda, já esquecida, sobre a construção dessa ponte. Por muito tempo, ecoou pelo “boca a boca” a seguinte história, contada pelo historiador Tadeu Rocha:
“Existe uma lenda de que era uma ponte ferroviária, destinada a um longínquo país africano, sob autoridade da Inglaterra. Tendo os maus ventos quase levado ao naufrágio do veleiro que a conduzia, este arribou ao nosso porto após safar-se da tormenta. Premido pela necessidade, o capitão do barco teria proposto a venda de sua pesada carga, uma ponte de ferro de quase 150 metros de comprimento. O Governo da Província logo aceitou a oferta, que lhe punha as mãos, cômoda e inesperadamente, material tão custoso e de que a cidade estava tão precisada”.
Há também poesias envolvendo a história da Ponte da Boa Vista, da “Prosopéia”, de Bento Teixeira, aos modernos Carlos Moreira e Rodolfo Maria de Rangel.
Uma ponte que encarou muitas enchentes
Apesar da construção com a justificativa em função do peso dos carros, a Ponte de Ferro tornou-se útil também para um mal que ainda assombra o Recife: as enchentes. As grandes cheias de 1884, 1897, 1914, 1920 e 1924 não conseguiram derrubar a velha ponte.
Enquanto isso, nos subúrbios, as pontes da Madalena ou da Caxangá sempre caíam, junto com milhares de casas que sumiam com a violência das águas. A Ponte da Boa Vista, impávida e segura, resistia às catástrofes.
Contudo, a sua resistência não duraria para sempre. Em 1965, as cheias no Capibaribe atingiram os seus pilares, ameaçando a sua estrutura e a segurança dos transeuntes. A partir daí, inicia-se uma longa jornada de três anos para a sua completa restauração.
Em 1966, durante um inverno ainda mais rigoroso, a Ponte foi duramente castigada pelo rio, sendo o seu arcabouço de ferro praticamente destruído. O imbróglio envolvendo esse importante ponto de circulação do Centro tornou-se um dos assuntos mais comentados no cotidiano recifense, principalmente entre os lojistas, maculando a popularidade do então prefeito Augusto Lucena.
A coluna “Retrato da Cidade”, de Severino Barbosa, denunciou assim a demora da reforma, em março de 1966: “Passamos lá por perto da Ponte da Boa Vista. Mas que tristeza, meu Deus. Que tristeza. Quanto abandono, quanto desprezo. Toda quebrada, esburacada, partida no meio, a ponte da Boa Vista nem parece mais aquela. Cadê o engenheiro por perto? Nada. Dizem que a culpa é de Volta Redonda. Ora, meu Deus. E enchente quer lá saber disso?”.
Sem o dinheiro necessário para a reforma, Lucena recorreu ao então presidente Castelo Branco, que prometeu 300 milhões de cruzeiros para a obra. A verba saiu à prestação, acarretando na lentidão do trabalho: o material ficou mais caro e a mão de obra aumentou de preço. Enquanto isso, recifenses protestavam e os comerciantes da Rua Nova e da Rua da Imperatriz reclamavam milhões em prejuízo.
A controvérsia patrimonial
Em meio aos trabalhos, mais um problema surge. O engenheiro Airton Costa Carvalho, da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), dirige ao prefeito um ofício informando que a reforma ameaçava a caracterização original da ponte.
Tratava-se de uma alteração em sua feição plástica. A carta é cheia de verbetes mais comuns à engenharia. Mas, em resumo, a prefeitura estava substituindo balaústres de ferro por cimento. “Eliminam o sistema de sustentação do tabuleiro composto de transversinas metálicas para substituí-lo por outro de concreto armado, que está vinculada às vigas mestras laterais”, explicava.
“Essas modificações vão alterar profundamente a feição estrutural e plástica da ponte, descaracterizando-a […] Essa estrutura metálica obedeceu a uma técnica construtiva que data de quase cem anos, porém, avançada e pioneira em seu tempo, além de rara no País. É de todo interesse preservá-la como marco de uma época, pois não é de se esperar que, no momento atual, nem no futuro, se construa uma ponte do mesmo tipo”, argumentava.
Diante do silêncio de Lucena, Airton Costa Carvalho decidiu ir à Justiça. A União Federal, representada pelo procurador da República José Maria Jatobá, ingressou na Vara da Fazenda Nacional com uma ação para suspender a obra, mas o pedido foi negado e a reforma seguiu, gastando quase um bilhão de cruzeiros.
Anos depois, Augusto Lucena iria se deparar com outra polêmica de patrimônio durante a finalização da Avenida Dantas Barreto, que demoliu a Igreja do Bom Jesus dos Martírios.
Em novembro de 1967, a ponte foi reinaugurada, 91 anos depois de seu nascimento em ferro. Assim, a ponte que chega aos nossos dias não é exatamente aquela da Watson & Smith. Um transeunte, no entanto, consegue facilmente sentir uma carga histórica que passa por Nassau, Barão de Lucena, Pereira Passos e todos aqueles que contribuíram para essa engenharia.
A Ponte da Boa Vista continua de braços estendidos para quem transita entre os tradicionais bairros do Recife.
Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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