Na última matéria da série “Comunidade do Pilar, tempos de esperança”, o Jornal Digital conta a história de Ana Patrícia. A tapioqueira já não contava mais com a possibilidade de cursar faculdade quando ganhou uma bolsa de estudo do Programa Pilar Universitário; agora quer ser chef e já se lançou como empreendedora no ramo da gastronomia
Por Silvia Bessa
Quase como um pensamento que ganha vida e é exposto desavisadamente, numa fala pausada, Ana Patrícia deixa escapar seus sentimentos. Revela como, em menos de dois meses de vida universitária, abasteceu-se de coragem e renovou a fé, após um episódio: “Ouvi a palestra de um chef muito famoso daqui do Recife, foi tudo ótimo, e, no fim, ele disse que gostava muito de fazer parcerias com faculdades e outras empresas. Fiquei imaginando que, como moro no Pilar, próximo ao restaurante dele, a cinco minutos, e agora faço gastronomia, tenho uma chance”.
Aos 30 anos, Ana Patrícia é bolsista do Programa Pilar Universitário e estava na sala de aula ouvindo como aluna do curso de Gastronomia, na Faculdade Senac. Foi quando ficou diante do chef e empresário Raphael Vasconcelos, proprietário do restaurante Moendo na Laje, instalado em um rooftop no Recife Antigo. “Lembro que ele disse que já esteve do nosso lado, tirou muitas dúvidas da gente sobre negócios, falou que, às vezes, a gente acha que está perdido, mas que é para não desistir”, recorda Ana em seu relato.
O encontro com Raphael, tão distante do mundo e da imaginação dela até poucos meses atrás, transportou Ana Patrícia Barbosa da Silva para um novo lugar social – aquele em que as pessoas trabalham na formalidade, ganham salário fixo, têm oportunidades de aprendizado, são reconhecidas por seus talentos e crescem nas suas carreiras. O encontro não veio do acaso; é uma sequência de acontecimentos recentes na vida dela.
Criada no Pilar, uma comunidade do Recife com baixos indicadores sociais e econômicos, a sensação de inclusão é nova para a jovem. Cursar o ensino superior, ainda mais “batendo nos 30”, como ela diz, já não era mais uma possibilidade com a qual contava. Havia tentado por meio do exame do Enem e não foi bem nos resultados. “Eu já tentei, sendo que eu não consegui. Primeiro porque eu nunca tive um colégio que me incentivou muito a querer isso (o curso superior), depois porque tinha de ajudar em casa e não dava para focar muito em emprego”. De mais a mais, sabia que não teria condições para pagar uma faculdade particular sozinha. “A faculdade é muito cara”, afirma.
Filha de uma tapioqueira, ela, a mãe Maria e a irmã Anelisa viviam do comércio da iguaria e precisavam se manter, o que significava deixar os estudos de lado. A convite de colegas, concordou em se inscrever para o Pilar Universitário, novo programa do Porto Digital e do Senac que oferece bolsas gratuitas e integrais a concluintes do ensino médio em condições de vulnerabilidade social e moradoras da comunidade.
“O problema era que não havia Gastronomia entre as opções e eu trabalho com comida há tempos, desde os meus 12 anos, então iria me ajudar muito”. Àquela altura da vida, Ana Patrícia quase não acreditava na ideia de que uma instituição pagaria para ela estudar, sobretudo tendo idade diferente do aluno padrão das universidades feita de maioria jovem, e estava feliz pela proposta, mas não estava conformada.
Conversa daqui, conversa dali, avança um pouco na negociação: “Conseguiram. O pessoal abriu uma exceção para mim e eu pude fazer o curso no Senac, que é maravilhoso”. A mãe de Ana, dona Maria Barbosa, há 16 anos se especializou como tapioqueira, montando barraca na comunidade e nas ruas do Recife Antigo, bairro em que o complexo de inovação tecnológica do Brasil, o Porto Digital, se expande economicamente e socialmente. Foi essa fonte de renda que sustentou três adultos e uma criança em casa por quase duas décadas. Desde agosto, Ana Patrícia virou universitária, entrou para a turma de Gastronomia e tem se empenhado nos estudos e no aprendizado, visando um dia abrir o seu próprio negócio.
Todos os dias da semana, ela estuda das 8h até 11h30 na faculdade para então começar a jornada de trabalho, revezando-se com a irmã e a mãe nos pontos em que vendem a tapioca – na feirinha da Rua do Bom Jesus, defronte ao Tribunal Regional do Trabalho e nas proximidades da calçada do Centro Cultural, ponto de encontro de turistas da capital. Em casa, conta com o apoio e incentivo da mãe e irmã para conciliar toda a jornada.
Com a ajuda de um primo, há um mês comprou um notebook para ajudar nos trabalhos da faculdade. “Precisava, né?! Tem muita coisa para aprender”, comenta ela, que agora é tida por muitos colegas do Pilar Universitário e outras pessoas da comunidade como uma influenciadora na captação de novos estudantes para o Programa.
“Minha amiga de infância mesmo saiu do Pilar por causa da moradia, mas a vida toda foi daqui. Ela não poderia ser beneficiada, mas quer muito, assim como outras pessoas que sempre me perguntam como o projeto funciona”, completa.
Ana gosta de contar que, quando foi convidada a participar do teste para o Pilar Universitário, não se sentia segura – sobretudo porque havia encerrado o Ensino Médio há muitos anos – mas que recebeu apoio integral do Porto Digital na fase preliminar para fazer o teste da prova de quatro horas para ingressar no Senac. Ela sabia que o problema maior seria a elaboração da redação e foi nesse ponto que se sentiu mais acompanhada.
Durante duas semanas, contou com aulas de professores que lhe prepararam para a prova, orientando sobre a abertura, desenvolvimento e conclusão de textos. “Eu gosto demais das aulas, todo dia tem uma novidade”, diz ela.
Um mundo pela frente
Ana Patrícia é exemplo diferenciado do programa pedagógico e social desenvolvido pelo Porto Digital por meio do Pilar Universitário. Fora do padrão estudantil pelo fator idade, ela conseguiu com habilidade abrir portas personalizadas para adentrar na vida universitária. De outro modo, com boa comunicação, tem mostrado que sabe lutar pelo que quer.
Há pouco contou que percebeu, por exemplo, as imensas barreiras econômicas dos alunos para terem acesso a um computador, ou até mesmo um tablet simples, como menciona ela, com o objetivo de ajudá-los nos estudos.
Para ela, essa será uma conquista futura para os alunos do Pilar. Assim como o computador, facas de cortes (instrumentos essenciais para o curso), roupas apropriadas e afins, no caso de gastronomia, e de outros cursos que exigem de ferramentas extras para aulas práticas. “São muitos gastos e nem sempre dá na vida que a gente tem”. Na comunidade, lembra Ana, a vida hoje é muito melhor se comparada à da infância, mas, mesmo assim, ainda é muito difícil.
O cenário tende a melhorar daqui para frente e com uma rapidez que pode até mesmo surpreender. “Outro dia um professor falou de uma oportunidade para trabalhar em um buffet de eventos”, disse. “Aos poucos, estamos abrindo nossa mente aos poucos, vivendo novas experiências. Eu mesma estou disposta a aprender com tudo. Fico imaginando conhecer todo tipo de cozinha, italiana, japonesa…já pensou?!”, brinca Ana Patrícia, para quem a esperança se renovou há menos de dois meses com um programa institucional voltado para a educação e empregabilidade, com uma palestra de um chef famoso e com uma janela que se abre para ela, para as mulheres da comunidade do Pilar e tantos jovens desejosos de uma vida melhor.
A força do exemplo
A esperança dos novos universitários da comunidade do Pilar é a mesma que enche o peito da vizinha dona Josilene de Matos, 65 anos, evangélica conhecida no Pilar como Irmã Tremenda, pela voz forte e fervorosa das suas orações.
Sem saber ler, com condições financeiras ruins e morando em barracos, a Irmã Tremenda não teve muita sorte com o destino dos seus dois filhos – ambos estão presos por delitos na justiça, mas é das maiores entusiastas do programa que concede bolsas integrais para o ensino superior a jovens daquela comunidade. “Vê os meninos crescendo é o mesmo que está vendo os meus filhos e netos. Quando eu vejo eles, fico com meu coração cheio de alegria e creio que os menores podem ter um futuro melhor”, comenta.
Avó de Radasha (13 anos), Anderson Lázaro (11 anos), Jasmin (12) e Damião (4), dona Josilene acredita na força do exemplo dado por estudantes como Eduardo Ribeiro, Gustavo Dantas e Ana Patrícia, todos retratados ao longo de três dias na reportagem especial do Jornal Digital intitulada “Comunidade do Pilar: tempos de esperança”.
Como a Irmã Tremenda, os vizinhos Josafá José do Nascimento e dona Suelen Gonzaga, ambos moradores do Pilar há décadas. “Esse espaço que o Porto Digital abriu é bom demais porque eles lutaram a vida toda e merecem São orgulho de todo mundo”, diz seu Josafá.
Todos torcem todos os dias pela expansão do programa, pela multiplicação de bolsas e interessados para que a história a ser contada pelo Pilar daqui a alguns anos seja outra, muito menos sofrida, e para que a comunidade deixe de figurar nas estatísticas negativas do Recife e passe a ser referência, um lugar em que o meio foi transformado pela educação.
Links para mais conteúdos da série Comunidade do Pilar, tempos de esperança:
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Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados
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