A tecnologia que viabilizou a criação do automóvel mudou para sempre o cotidiano de cidades como o Recife. Em seu livro “Arruar – História Pitoresca do Recife Antigo” (1948), o escritor Mário Sette comenta que o primeiro automóvel a causar grande interesse e alvoroço na cidade foi um Renault, de propriedade do Dr. Ovário de Freitas. Ali nascia a febre do automobilismo.
“Andava pelas ruas centrais, pulando no ruim calçamento e fazendo o motor um barulho dos diabos. Ouviam-se-lhe os estouros de longe e todos corriam às janelas para admirá-lo. E invejá-lo”, escreveu. O ano era 1904.
Cerca de quatro décadas depois, o carro, apesar de pouco acessível a uma parcela significativa da sociedade, já deixava de ser uma extravagância para se tornar um instrumento de trabalho. Nesse contexto, as corridas de automóveis se popularizaram sob o argumento de demonstrar as qualidades dessa ferramenta e a destreza em usá-la.
O Recife teve os seus circuitos automobilísticos de rua, hoje bastante esquecidos – exceto pela lembrança de alguns saudosos da velha guarda. Foram eles: o Circuito de Boa Viagem, realizado anualmente entre 1947 e 1951, e o Circuito do Derby, que existiu entre 1949 e 1952. Ainda foi realizada a “Subida da Montanha”, no Alto José do Pinho, em 1951.
Quando se fala dessas corridas da década de 1950, não raro se remete às provas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Porém, esses circuitos ocorriam com alguma frequência no Nordeste. E até a inauguração do autódromo Virgílio Távora, em Fortaleza, o Recife era o principal polo de automobilismo na Região Nordeste.
Circuito de Boa Viagem
A criação do circuito automobilístico no Recife, então inédito no Norte-Nordeste, foi iniciativa do Automóvel Clube de Pernambuco – instituição que instalou a placa de marco zero do Recife na Praça Rio Branco, em 1938.
O primeiro evento foi o Circuito Boa Viagem, patrocinado pelo Clube junto a importantes firmas da cidade, com rendas destinadas às pessoas carentes, a cargo do Juizado Privativo de Menores.
Embora organizada de última hora e com pouca publicidade, a competição teve um sucesso imprevisto. A multidão se espalhou ao longo da pista circular de 7 km de extensão que compreendia terrenos de Boa Viagem, Ibura e Piedade.
Vale ressaltar que, na década de 1940, Boa Viagem ainda estava no início da transição de “área de veraneio” para o bairro favorito das classes abastadas para residência. Assim, suas vias eram mais livres para a prática desse esporte.
Em 25 de maio de 1947, oito “volantes” competiram no I Circuito Boa Viagem. O vencedor dessa corrida foi Pietro Carneiro, que fez o percurso de 70 km (dez voltas na pista) no tempo de 43 minutos e 59 segundos. Ele pilotou um moderno carro Ford de passeio.
Eduardo Costa (conhecido por Baby), com um Mercury, e Virgílio Machado Alves (o Vivi), com um Hudson, figuraram em segundo e terceiro lugar, respectivamente.
Diante do crescente interesse público pela prática, o Automóvel Clube passou a realizar torneios anuais em Boa Viagem. O número de volantes subiu para 15, enquanto o percurso passou a ser 105 km percorridos (em 13 voltas).
Assim, todos os anos, os amantes do automobilismo aguardavam a chegada do circuito, assim como os cariocas aguardavam o Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro. Pensando em movimentar mais esse calendário, o Clube decidiu criar o Circuito do Derby.
Circuito do Derby
O primeiro Circuito do Derby ocorreu em 1949. Apesar de já exercer protagonismo na dinâmica do Recife, o Derby ainda não era como o atual corredor urbano. Nas décadas anteriores, o bairro se desenvolveu para ser residência das classes mais abastadas.
A diferença desse circuito para o de Boa Viagem era a participação de carros de pequena cilindragem, como Vauxhall, Citroen, Austin, Renault e MG. O percurso media 1.359 metros, com a competição disputada em 25 voltas.
Em 22 de maio de 1949, o I Circuito do Derby atraiu uma multidão para os arredores da atual praça, mesmo debaixo de chuva.
“Foi a competição automobilística mais bem organizada que já se realizou nesta capital. Um acontecimento que merece figurar nos anais esportivos de Pernambuco pelo arrojo de sua iniciativa, pelos obstáculos vencidos para sua concretização e pela perfeita ordem que reinou”, registrou o Diario de Pernambuco, em 24 de maio de 1949.
A prova foi vencida por Itagibe Chaves, que concluiu as 25 voltas no tempo de 31 minutos e 59 segundos. José Veloso e Baby Costa figuraram em segundo e terceiro lugar, respectivamente. Pelo sucesso do Derby, ventilou-se ainda criar o circuito Torre-Madalena, o que não se concretizou.
Esquecimento
O Automóvel Clube de Pernambuco realizou seis edições do Circuito de Boa Viagem e quatro do Derby, além de algumas outras atividades esporádicas. Contudo, já em 1953, toda essa agenda foi “freada”.
No texto “Automobilismo, um esporte esquecido”, publicado em 20 de setembro daquele ano no Diario de Pernambuco, o articulista de Esportes Norberto Valle tenta elencar algumas razões desse enfraquecimento.
“As interessantes competições foram esquecidas criminosamente pelos homens que mantêm as lideranças do esporte do volante entre nós. Desconheço na realidade qual o motivo pelo qual o arrojado esporte anda desaparecido do nosso meio, justamente numa época em que mais precisamos dele, a fim de mostrar para o resto do Brasil esportivo o nosso ponto de movimento”, escreveu.
“Os rapazes que praticam o esporte ficaram desinteressados. Penso que, apesar dos pesares, os verdadeiros amantes do automobilismo pernambucano ainda estão com esperanças de melhores dias”, continua.
“Seria até muito interessante que as agências fossem as primeiras pedras colocadas nessa nova estrada, contribuindo com prêmios, taças e tudo aquilo que fosse necessário fazer. A Prefeitura também em absoluto não deve continuar com esse olhar de peixe frito que tem sido o escudo em relação à ajuda a qualquer tipo de esporte que tencionou-se ser praticado em nossa terra.”
As sugestões de Norberto Valle não foram atendidas, mas essas corridas marcaram época e deixaram curiosos registros fotográficos. A velocidade estava em sintonia com a capital que era a terceira principal cidade brasileira.
Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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