Bem ali, naquele que conquistou o título de maior e mais relevante Parque Tecnológico Urbano da América Latina, no miolo do território recifense, pessoas negras eram escravizadas. “Milhares de afrodescendentes”, lembra um dos jovens curadores do REC’n’Play 2023, Daniel Paixão, de 21 anos. Voltar ao mesmo espaço, ao Bairro do Recife, agora como protagonista e fazendo parte dessa ocupação envolvendo tecnologia e conhecimento, tem uma relevância insuperável, frisa ele. “São meus ancestrais, os ancestrais de muitos de nós, da periferia. Ter a oportunidade de participar do REC’n’Play como curador oficial é, para mim, o resgatar de uma valorização”.
Estar no festival, diz Daniel, é colocar as pessoas negras no lugar de potência. Ao mesmo tempo, sinal de reconhecimento. “É entender que, sim, sou um jovem negro periférico, de uma realidade vulnerável, e que posso contribuir para que outros jovens periféricos, de um ambiente como o meu, percebam suas capacidades”, destaca.
Daniel tem uma consciência social que impressiona. E a utiliza para alavancar outros jovens de origem humilde, como ele. “O jovem da periferia precisa ocupar os espaços para mostrar as suas capacidades revolucionárias e que precisam ser vistas e compartilhadas por outras pessoas”, pontua.
Para ele, a prática da ocupação, da tomada e do assenhoramento de ambientes como esse que o REC’n’Play oferece é positiva, necessária e transformadora. Ele acredita numa troca não limitante, libertadora, na qual os jovens usam suas potencialidades e capacitação (quando lhes é oferecida) para colocar em prática ideias inovadoras de maneira customizada, adaptadas às necessidades vistas nas suas comunidades. Isso porque as periferias se parecem, mas não são iguais. Costumam ter suas particularidades.
Apesar da pouca idade, Daniel Paixão é um veterano quando se trata do desenvolvimento de iniciativas sociais. Morador do bairro de Maranguape I, de uma região conhecida como Favela do Jacaré, ele cresceu cercado por pessoas pobres e carentes de tudo. Inconformado e se vendo como peça de uma engrenagem transformadora, desde 2015 tem promovido ações culturais, esportivas e educativas, usando a tecnologia para falar e promover as “revoluções” a que se refere – transformações digital e social.
Nesta quinta edição do Festival REC’n’Play, organizado sob a liderança do Porto Digital e da Prefeitura do Recife, Daniel foi convidado não só a fazer uma palestra, mas a ser curador oficial do evento. Um cargo ocupado por poucos, com a chance de organizar mesas de debates, definir temáticas dentro de um eixo específico e mediar conversas densas e produtivas. “Ver minha fotinha lá como curador do festival deste ano, com a possibilidade de conectar essas margens periféricas junto com outros colegas, foi muito bom”, afirma ele.
Coube a Daniel, por exemplo, mediar a conversa com Gelson Henrique, da Iniciativa PIPA, uma organização social que se dedica a contribuir para a democratização de recursos para outras organizações sociais no País.
Conquistar uma posição de destaque na edição de 2023 do REC’n’Play, sabe Daniel Paixão, é o resultado de uma construção, desenvolvida com ações, programas e projetos realizados que conquistaram o apoio de instituições inclusive do exterior. Ele é fundador do projeto Frutos da Favela, que dará vida ao Hub.Periférico, uma espécie de plataforma com modelos digital e físico, para ampliar a performance dos jovens da periferia, como ele.
Daniel, que sonhava em ver a Comunidade do Jacaré relacionada a notícias positivas, quer dar condições para que os jovens transformem as vulnerabilidades das favelas em oportunidades. O Hub.Periférico deve ganhar sede própria e conta com o incentivo do governo britânico por meio do UK Brazil Tech Hub – apoio confirmado com a visita da embaixadora do Reino Unido no Brasil, Stephanie Al-Qaq, em junho deste ano, ao conhecer o prédio onde funcionará o espaço, assegurou o investimento de R$ 150 mil para a realização de um hackathon climático. O Hub.Periférico, futuro ecossistema dentro do território do Porto Digital, funcionará na Avenida Martins de Barros, nº 75, em um imóvel doado pela Santa Casa de Misericórdia.
Em 2022, Daniel Paixão havia sido convidado a palestrar no REC’n’Play. Desta vez, além de participar, levou consigo outros jovens e experiências. “Priorizei mesas com propostas inovadoras, que valorizavam a tecnologia ancestral, o investimento social privado para startups periféricas”, diz ele. Nas mesas, esses jovens tiveram a oportunidade de contar sobre as práticas transformadoras que protagonizam dentro dos territórios.
Continuação da série VOZES DO REC’N’PLAY com Daniel Paixão
O futuro que vem das periferias
Daniel Paixão mostra como impactar seu território
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Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados
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