Pela família, Flávia Brito teria duas opções a escolher para se destacar com uma carreira profissional bem sucedida: ser médica ou advogada. Aspirando ir além das expectativas da família e do padrão daquilo que significava ser bem sucedido na época, Flávia não tinha clareza sobre os seus sonhos, mas tinha certeza que eles não estavam naquelas duas atividades. “Médica eu não seria porque gostava de dormir, e não posso ver sangue porque tenho medo e nojo”. Advogada estava igualmente fora dos planos.

Enquanto não achava a solução, assentiu para o pai e para a mãe, dando a entender que queria ser médica. “Se eu não concordasse, eu não viria para o Recife”, conta ela, que morava em Pesqueira, no Agreste. Recebeu a aprovação para se mudar para a pensão da prima da mãe, na Rua da Aurora, na capital pernambucana, enquanto focaria nos estudos. “Naquela época não tinha restaurante self-service e hotel era caro, então foi a saída”. Na pensão, durou pouco. O dinheiro em casa ficou ainda mais escasso. 

 Sem poder pagar os custos da pensão, a família precisou encontrar uma forma de manter Flávia no Colégio Contato, um dos mais renomados do Recife na década de 1990. O pai estava desempregado em Pesqueira e foi convidado a trabalhar numa empresa no Cabo de Santo Agostinho, onde passou a morar em um kitnet minúsculo. A mãe, que se tornaria bancária depois, ao passar em um concurso, naquela época estava sem trabalhar.

Flávia Brito, CEO da Bidweb, é a primeira personagem da série Lideranças Tech – Credito: Acervo Pessoal

Adolescente, Flávia precisou largar a pensão e ir para o Cabo, dividindo o kitnet com o pai. Um passe de papel na mão, sem telefone celular, sem dinheiro, mas com o trajeto na cabeça, ela fazia parte do percurso de trem (“Mamãe confiava em mim”). Até hoje lembra que se protegia por trás de uma placa maior do vagão para se livrar de malandros que jogavam fezes para atingir os passageiros (“Você acredita!?”).

Horas depois de enfrentar o trânsito caótico do bairro de Pontezinha (Cabo de Santo Agostinho), seguindo o trajeto, descia no terminal do trem no Bairro de São José, no Recife, para pegar um ônibus. Com colisões ou qualquer outro imprevisto, a rotina mudava por completo. Estando tudo na ordem, chegando no terminal lançava mão do passe até chegar ao Colégio Contato.

Já no 3º ano do Ensino Médio, avisou que tentaria Computação. “Meu pai ficou seis meses sem falar comigo”. Flávia havia se inspirado em um mentor chamado Diógenes, um colega de sala que gostava de ler revistas sobre computadores. Ele a incentivou e sugeriu inclusive em qual universidade deveria cursar. Era um cearense cujo sobrenome ela não lembra, mas que é agradecida e até hoje anseia por encontrá-lo para falar do “bem que fez para toda a minha vida”.

Começa assim a história de uma das mais bem-sucedidas e uma das primeiras empreendedoras de tecnologia do ecossistema de inovação a céu aberto do Porto Digital, case no Brasil e na América Latina. Fundadora e CEO da Bidweb Security It, criada em 2002 e focada em cibersegurança, Flávia tem o reconhecimento local e inserção no Nordeste e no Sudeste. Sua empresa fatura R$ 50 milhões por ano, tem sede no Recife e filiais em São Paulo e nos Estados Unidos. A vontade do pai para que se tornasse médica não deu certo, mas os planos dela foram um sucesso.

Imersão de jovens na empresa Bidweb, ocorrida em 2022 – Crédito: PC Pereira

Flávia Brito narra sua jornada como empreendedora e vitórias com satisfação. Diz que apagou da sua memória as dificuldades (“Prefiro não me ater a elas. Foram enormes no início da carreira, eu sofria preconceito, mas nada me impediu de avançar”). A lembrança é necessária: Flávia milita pela inclusão social, pela formação e liderança de mulheres e de minorias e o passado de dificuldades é parte (ou mola) para ela. “Desde muito nova sabia que nada cairia do céu. Já era líder, não me via fazendo concurso público e queria mudar a vida das pessoas”, diz. 

Flávia Brito é uma raridade em meio a um universo predominantemente masculino. Hoje, empreendedora com maturidade, tem trabalhado pela inclusão de outras mulheres no mercado regional da tecnologia, promove cursos exclusivos para mulheres, participa de grupos de ativismo para o empoderamento feminino, defende o investimento das empresas na formação e contratação de mulheres e mais: em funções de lideranças. “Cada um tem sua bandeira e eu respeito; a minha é pela mulher”, afirma. “Se me dizem ‘Flávia, eu não tenho nem 10% da minha equipe de mulheres, e está sendo muito difícil contratar’. Eu falo ‘o melhor investimento é acreditar, plantar e trazer ações. É você trazer a oportunidade para elas’”. Vê-las em cargos de liderança será uma consequência.

Em palestras para as quais é convidada e onde sua condição de mulher de sucesso é evidenciada, costuma ser abordada por jovens aspirantes do setor de tecnologia. Logo responde: “Você não será igual a mim. Você será melhor que eu e eu estarei lá para aplaudir”. Se é questionada sobre sua condução, com tom de voz mais firme, soando confiança, explica que percebeu que a empatia e a sensibilidade feminina podem “fazer muita diferença frente a outros gestores”.

Flávia se deu conta da sua força diferenciada, entendeu e se envolveu no ativismo social e urbano defendido pelo Porto Digital, onde a Bidweb é sediada, e dedica energia extra para fazer valer o espírito vanguardista de Pernambuco, desde a Capitania dos Portos – fundada em 1846 e escoadouro de Pau-Brasil e açúcar. Uma característica lembrada por ela como se esse fosse um norte importante para a sua jornada.

A CEO não costuma falar do tema, mas, diante da insistência, conta que viveu todo tipo de experiência discriminatória. De chegar em uma reunião e o interlocutor ignorá-la até que, prestes a fechar um negócio, a pessoa que estava com ela precisar dizer: “Ok, mas quem resolve isso é Flávia, nossa CEO”. Narra que foi alvo ainda de iniciativas das mais sujas, com o objetivo de manchar a reputação dela. “O mais podre que se pode ser é tentar difamar ou atingir a competência de uma mulher afirmando que ela fez o teste do sofá para conseguir suas conquistas”, diz Flávia. Nem uma, nem duas. Foram várias as vezes em que Flávia viu-se diante de experiências calcadas na discriminação.

Hoje, a Bidweb tem as principais contas de Pernambuco e do Nordeste no setor de Cibersegurança – Crédito: Acervo Pessoal

Quando alguém menciona ou faz alguma menção como “mas você é mulher”, Flávia responde rapidamente:  “Sou mulher porque eu faço multitarefas e eu faço muito mais coisas que você, que é homem e não faz”, conta. Se precisa, fica brava para que se mantenha o respeito.    

O INÍCIO DA JORNADA DE FLÁVIA BRITO DA BIDWEB

Com apenas 26 anos, resolveu empreender em tecnologia. Uma ousadia pela área e pela idade. O início da carreira foi incentivada por uma decisão equivocada de um ex-chefe, que quis tirar a funcionária do setor de que mais gostava para uma outra área. Estudante de Computação, chegou a acumular três empregos para manter-se em uma instituição de ensino paga, a Universidade Católica de Pernambuco, conceituada pela característica de formar pensando no mercado e não na vida acadêmica. Ela era analista de grandes formatos de propaganda – banner, outdoors para clientes corporativos – em uma empresa multinacional e tinha uma área de formação de vendas muito forte. 

Flávia ansiava por ser vendedora, colocava-se na linha de formação como parte de um setor da empresa intitulado “universidade de vendas”, mas sempre que questionava o seu gestor à época, ele respondia: “Você ainda não está pronta”. Insatisfeita, pediu demissão e foi contratada por uma consultoria em meados de 2001. Já se interessava pela segurança da informação. Com quatro meses de trabalho, aliando seu conhecimento adquirido com o comercial, conquistou o cargo de gestora da área de segurança. Pela segunda vez, discordava da condução dada pela empresa.

“Fui chamada por um dos sócios e ele falou que não queria que eu trabalhasse com segurança. ‘Quero você trabalhando com o network’”. Expressiva e falante, talvez prosperasse no network, mas Flávia Brito não queria seguir nesta arena. “E aí eu falei para ele, ‘olha eu tô muito feliz fazendo o que eu estou fazendo hoje, eu me identifiquei muito e é isso que eu quero fazer. Não quero mudar’. Ele falou: ‘Se você não quiser mudar, não tem vaga para você aqui, tudo bem sair’”.

Foi o que ela fez. “Imagina você estar com uma pessoa lá dentro, apaixonada pelo que faz, e você dispensa a pessoa. Eu jamais faria isso, né?”. Foi o suficiente para ela sair e ousar como empreendedora. “São aprendizados que a gente vai trazendo para a vida. Eu teria encontrado uma forma de manter. Uma empresa que não tem liderança sustentável não prospera”.

O primeiro investimento na Bidweb foi feito pela mãe dela (“Pedi dinheiro a ela, expliquei o projeto e ela me emprestou”). A mãe de Flávia é citada com frequência em entrevistas como a grande apoiadora dela, como alguém que “sempre acreditou que o estudo e o comprometimento com o trabalho faria diferença na vida dela” – um entendimento que tinha raízes na infância pobre que fez com que a mãe começasse a trabalhar aos 12 anos.

A Bidweb conquistou os selos ISO/IEC 27001, de empresa ética/ABES; Certificação GPTW; e Certificação ISO/IEC 27701

No início da Bidweb, Flávia contou com um namorado, que se tornou seu sócio. Com o fim do relacionamento meses depois, seguiu só por um bom tempo, enfrentando preconceitos, ouvindo comentários sexistas e insinuações incabíveis que não só questionavam a capacidade técnica e comercial dela como empreendedora. Flávia passou um tempo sozinha, até que anos mais tarde firmou parceria com seu atual sócio, Fábio Costa. “Nem sempre a gente acerta. A gente leva um monte de tombos, mas a gente tem que se levantar e se apoiar”

Naquela época em que ela conduzia seu sonho, quando pouco se falava de cibertecnologia e sendo ela uma mulher entre tantos homens, era chamada de “louca”. “Eu queria ajudar a melhorar a vida das pessoas, por meio de cada empresa que eu atendo, fosse em saúde, educação…”. Ela queria mostrar que era possível uma mulher, do Nordeste, trabalhar e inovar na área de cyber.

A BIDWEB É UMA ALFAIATARIA

A entrada da Bidweb para o ecossistema do Porto Digital, em 2014, foi um passo que potencializou a empresa. Reservaram uma sala, e aos poucos a empresa foi crescendo, conquistando novos clientes. Hoje a Bidweb tem as principais contas do Nordeste e de Pernambuco, no setor. Em 2018, foi criado o Bidlabs, laboratório de pesquisa para resposta aos clientes. A empresa propaga que é especialista em segurança estratégica e Flávia traduz de forma didática esse serviço: “Éramos somente uma multimarcas de produtos; hoje também somos uma alfaiataria, em que customizamos o produto conforme entendemos o cliente e estudamos uma estratégia para adotar para ele”.

Em 2000, a Bidweb conquistou o selo ISO/IEC 27001. No ano seguinte, vieram selos de empresa ética/ABES; Certificação GPTW; e Certificação ISO/IEC 27701 – todos conferindo qualidade aos serviços prestados. Atualmente, a Bidweb atende a grandes, médias e pequenas empresas de amplitude nacional, oferecendo suporte, governança, monitoramento, treinamentos, entre outros serviços.  

Com o Porto Digital, a relação tem se estreitado a cada ano. Flávia gosta de afirmar que integrar o parque abre portas, “mas cada um tem de buscar e correr atrás do seu caminho”. Passou a dedicar parte do seu tempo ao movimento liderado pelo Porto Digital como instituição, pelo presidente Pierre Lucena, toda a equipe que lhe dá suporte, e por alguns pensadores do conselho do ecossistema.

“A gente está mudando esse cenário. Estamos trazendo pessoas com vulnerabilidade social, trazendo mulheres, pessoas trans. Aqui no escritório abro muitas oportunidades e espero que as pessoas aproveitem o bolo de mais de trezentas empresas que integram a formação em tecnologia na cidade”. Para exemplificar, Flávia destaca o percentual de 50% dos estudantes que integram o programa Embarque Digital e já estão integrados.

O fortalecimento e ampliação do compromisso da Bidweb com causas sustentáveis são empreitadas mais recentes. Desde a pandemia da Covid-19, iniciada em 2020, Flávia Brito resolveu imergir no assunto e estudar com a equipe de que forma a empresa poderia colaborar com uma gestão responsável social e ambientalmente.

O ponto de partida é o compromisso em combater a pirataria, reprimindo o uso de softwares sem licença oficial. Como empresa de segurança, esse é ponto pacífico para a Bidweb, informa Flávia. Separação de resíduos por materiais, produção de energia solar com uma fazenda instalada em Sanharó (PE) para abastecer a Bidweb, coleta de lixo orgânico para posterior reuso, promoção da saúde entre funcionários com o estímulo à vida saudável, balanças de bioimpedâncias nos andares da Bidweb e acompanhamento de ginástica laboral.

A preocupação agora é expandir e ampliar o leque de oportunidades para jovens recifenses que ingressam na área de tecnologia ou cibersegurança. Em breve, a Bidweb deve iniciar a construção de uma sede maior e mais bem equipada. Também no Bairro do Recife, onde – para ela – serve não só de estímulo para outras empresas se desenvolverem, como ambiente fértil para o fomento da criatividade e abertura de negócios.

Flávia Brito sabe o que viveu e enfrentou até agora. O mais estimulante nela é ouvi-la segura de seu papel de mulher empreendedora que já pagou muitas guias de eSocial – como diz. Sem esse passo, ninguém é empreendedor, pontua. “Sou mulher, com orgulho, e sobrevivi com muita vontade de vencer”.

Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados

Comments are closed, but trackbacks and pingbacks are open.