Na semana passada, a cidade de Austin (EUA) recebeu a edição 2024 do South by Southwest (SXSW), a conferência anual que abrange música, filmes e tecnologia interativa. E dentro do evento, que em si já se tornou tradicional do calendário do mundinho da TI, sempre acontece a esperada palestra da futurista Amy Webb, fundadora do Future Today Institute, uma consultoria líder em previsão de tendências e estratégia. 

Webb é reconhecida por sua expertise em prever as tendências tecnológicas futuras e seu impacto potencial em diferentes setores e na sociedade como um todo. No SXSW, seu painel é frequentemente um dos mais destacados no evento, onde apresenta análises profundas sobre o futuro da tecnologia e suas implicações, atraindo uma grande audiência de profissionais de várias indústrias, incluindo tecnologia, mídia e entretenimento.

Este ano, Amy Webb desenrolou o tapete vermelho do que ela chamou de “technology supercycle”, um período prolongado de inovação tecnológica intensa e de rápido desenvolvimento, impulsionado principalmente por três tecnologias fundamentais: inteligência artificial (AI), ecossistemas conectados (coletivos) e biotecnologia. 

Essas tecnologias são vistas como “tecnologias de propósito geral”, o que significa que têm o potencial de influenciar e transformar vários setores da economia e aspectos da vida cotidiana, de maneira semelhante a como a eletricidade e a internet tiveram impactos transformadores no passado.

IA: o cimento que liga os tijolos do futuro

A Inteligência Artificial, queridinha do momento, não podia ficar de fora.  A IA, para Amy, é a base desse superciclo: sua evolução contínua e os avanços em aprendizado de máquina e processamento de dados estão impulsionando inovações em várias outras áreas tecnológicas e em diversos setores, desde saúde e finanças até fabricação e entretenimento. Ela permite automação avançada, análise de dados mais profunda e insights preditivos.

Com a IA, também estamos vendo a emergência de novas formas de interação humano-máquina, como assistentes virtuais sofisticados, interfaces de conversação e sistemas que podem interpretar e responder a dados sensoriais complexos. Para Webb, a transição de respostas baseadas em prompts textuais específicos para um modelo onde conceitos abstratos podem ser transformados em resultados concretos e tangíveis, facilitando processos criativos e de solução de problemas em várias áreas.

Essa expansão para além dos modelos de linguagem, envolve modelos de ação e interação mais complexos e contextualizados, se encaixa com outra tendência que a futurista tem à vista: o surgimento de Ecossistemas Conectados (Connectables), a proliferação de dispositivos interconectados e sensores – como wearables, dispositivos de realidade estendida e IoT –  que coletam uma enorme variedade de dados. Esses dados alimentam e aprimoram os sistemas de IA, criando um ambiente de dados mais rico e diversificado.

A explosão de dispositivos conectados e sensores promete ser o buffet a la carte que a IA precisa para se banquetear com dados do mundo real. Desde “computadores de rosto” (como os óculos de VR/AR da Apple, o Vision Pro, e o Quest da Meta) até wearables lendo nossas intenções – parece que a privacidade será um artigo vintage.

Desde sempre, a IA utiliza dados como material para aprendizado, análise e aprimoramento contínuos. Quanto mais dados a IA recebe, mais precisa e eficiente ela se torna. Isso pode incluir reconhecer padrões, fazer previsões, identificar anomalias e até mesmo oferecer insights acionáveis, o que é crucial em aplicações como monitoramento de saúde, manutenção preditiva em indústrias e personalização de experiências para consumidores.

Por exemplo, em uma casa inteligente, a IA pode analisar dados de sensores para ajustar automaticamente a iluminação e a temperatura, otimizando o conforto e a eficiência energética. A integração de IA com ecossistemas conectados possibilita o desenvolvimento de sistemas que se adaptam e respondem às necessidades e preferências individuais, tornando a tecnologia mais intuitiva e centrada no usuário.

Ecossistema conectado

Essa combinação também abre portas para novos modelos de negócios e serviços que podem oferecer soluções mais eficientes, personalizadas e inovadoras em diversos setores, desde saúde até varejo e entretenimento. Nesse ponto, Amy Webb até começa a fazer uma diferenciação entre “connectables”, dispositivos e tecnologias que fazem parte de ecossistemas conectados, como os como wearables, e os “collectibles”, que será a coleção de todos esses equipamentos, coletando e processando nossos dados. 

Esses dados podem ser usados em conjunto com as informações obtidas através da biotecnologia para obter um entendimento mais completo e preciso do bem-estar humano e das interações com o ambiente. A combinação de dados biológicos com o monitoramento contínuo proporcionado pelos collectibles permite a criação de tratamentos de saúde mais personalizados e eficazes, baseados em IA, que levam em conta as condições individuais do paciente e as mudanças ambientais em tempo real.

A convergência da biotecnologia com os collectibles e a IA, porém, não vem sem seus desafios éticos e regulatórios, incluindo questões de privacidade de dados, consentimento informado e impactos sociais das tecnologias emergentes. Esses desafios requerem uma consideração cuidadosa e uma abordagem regulatória equilibrada.

Um tema importante destacado por Webb é a necessidade de abordar desafios éticos e sociais relacionados à IA, como o viés algorítmico em sistemas de IA e a falta de mecanismos eficazes de responsabilização. Ela enfatiza a necessidade de sistemas de IA serem éticos e justos, evitando preconceitos e discriminações.

Dentro deste mesmo tema, há o risco de uma divisão digital agravada, onde o acesso a tecnologias avançadas e os benefícios que elas trazem podem ser desigualmente distribuídos, exacerbando as desigualdades sociais e econômicas.

Privacidade na nova Era Digital

Da mesma maneira, com o aumento da coleta de dados por dispositivos conectados, surgem preocupações significativas sobre a privacidade e a segurança desses dados. Há um desafio em proteger informações pessoais e sensíveis de usos indevidos, vazamentos ou ataques cibernéticos. E além: a chegada dos biocomputadores e o uso de células humanas para desenvolver computação biológica levantam questões éticas sobre a procedência das células, consentimento e as implicações morais de usar material biológico humano dessa forma.

Existe uma lacuna significativa entre o rápido avanço tecnológico e o desenvolvimento de regulamentações e leis adequadas para governá-lo. Webb sugere a necessidade de um Departamento de Transição governamental para abordar as mudanças provocadas pelo superciclo. Esse órgão ficaria responsável por detectar o potencial de abuso de tecnologias avançadas, seja para vigilância invasiva, manipulação de informações ou fins militares e destrutivos – uma preocupação ética primordial.

Por fim, as implicações das tecnologias emergentes em nossas vidas sociais, culturais e cotidianas, e como elas moldam nosso comportamento, interações e valores, são desafios éticos que necessitam de reflexão e discussão na visão futurista.  À medida que sistemas automatizados e baseados em IA se tornam mais prevalentes, surge a questão de como isso afeta a autonomia humana, bem como o papel e o significado do trabalho humano.

Webb enfatiza a importância de abordar proativamente esses desafios, argumentando que somente através da reflexão ética, da regulamentação cuidadosa e da participação inclusiva podemos garantir que o avanço tecnológico beneficie a sociedade de maneira equitativa e sustentável. 

Para não apenas sobreviver, mas prosperar neste superciclo, Webb aconselha se manter informado, abraçar a previsão estratégica e participar da conversa maior sobre como moldar esse futuro. Afinal, queremos uma jornada tecnológica emocionante, não uma odisséia espacial com o HAL 9000 no comando. 

*Para caso estejamos num futuro dominado por IAs, saibam que eu sempre estive do seu lado, certo?

Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF

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