Da tecnologia à cultura, a premissa de “fazer muito com pouco” foi bastante aplicada no Recife entre as décadas de 1970 e 1990. Em um período de relativa perda de prestígio da cidade em diferentes setores, a criatividade, a perseverança e o improviso não apenas fizeram a diferença, mas também impulsionaram uma revolução no cinema.

Após o movimentado Ciclo do Recife na década de 1920, a capital enfrentou um longo período de marasmo na sétima arte. Entre 1973 e 1983, Pernambuco despontou nos festivais graças a uma alternativa tecnologicamente atrasada: a Super 8, uma película cinematográfica fabricada pela Kodak nos Estados Unidos, em 1965, para uso amador.

Câmera Super 8 (Imagem: Tribeca Film)

O filme Super 8 mm era uma película reversível, permitindo a filmagem e revelação como imagem positiva no mesmo material. Seu baixo custo em comparação com as bitolas profissionais de cinema (35 mm e 16 mm), aliado à facilidade de manuseio e à qualidade superior em relação ao 8 mm tradicional, o tornou o formato preferencial para filmes experimentais de estudantes e cineastas iniciantes.

No período citado, foram produzidos mais de 200 filmes gravados com Super 8 no Estado. Entre os principais realizadores pernambucanos estão nomes como Geneton Moraes, Neto, Celso Marconi, Fernando Spencer, Jomard Muniz de Brito e Paulo Cunha.

Geneton Moraes Neto com Câmera Super 8 (Imagem: Desconhecido)

Como começou a febre do “Super 8”?

De acordo com o pesquisador Marcos Santos, as câmeras que faziam uso do filme Super 8 chegaram ao Recife através de pessoas que viajavam aos Estados Unidos ou à Europa.

De início, a finalidade seria fazer filmagens domésticas – que tinham aquela estética caseira hoje usada em cenas que remetem ao passado em filmes. Contudo, logo o dispositivo caiu nas mãos de filhos da classe média recifense interessados em cinema, que tinham a possibilidade de arcar com os custos da produção e realizá-la de uma forma caseira.

“O S-8 foi ressignificado e os usos iniciais que visavam apenas ao registro de cenas caseiras deram espaço para a criatividade dos superoitistas.”

Anúncio do II Jornada Nordestina de Curta Metragem, realizada em Salvador, em 1973

A febre ficou evidente, pela primeira vez, durante as inscrições da II Jornada Nordestina de Curta-Metragem, realizada em Salvador, em 1973.

A coluna “Aldeia Global”, do Diario de Pernambuco, escreveu: “A cada semana, praticamente, um cineasta do Recife, em geral iniciante, procura inscrever-se, indício de que, pelo menos em matéria de cinema, há a preocupação de se realizar, aqui, um trabalho de criação”.

“Todos os filmes até agora inscritos foram realizados única e exclusivamente às custas de cada um dos concorrentes, o que faz Fernando Spencer [crítico de cinema do jornal] crer na existência do ‘movimento de cinema marginal do Recife’.”

Matéria sobre ‘movimento de cinema marginal’ na coluna Aldeia Global, no Diario de Pernambuco

Super 8 ganhou sala de cinema…

Nos primeiros anos, o circuito ainda era mais restrito aos realizadores, formadores de opinião e demais interessados. Isso não impediu que surgisse até uma sala de exibição destinada ao formato. Era a “Sala Sérgio Porto”, localizada em Boa Viagem, Zona Sul.

Tratava-se de um auditório de 30 lugares para projeção, localizado na casa do cineasta Hugo Caldas. Foi a primeira sala do Norte e Nordeste totalmente destinada a esse tipo de produção.

Matéria sobre inauguração da Sala do Super 8, em edição de 28 de junho de 1973 do Diario de Pernambuco

… e vários festivais locais

Em 1975, Pernambuco já era o Estado do Nordeste com maior produção em Super-8. 

O grande público veio conhecer mais os filmes com a I Mostra Recifense do Filme Super 8, realizado no Cineteatro do Parque dentro do projeto “Cinema Educativo Permanente”, da Secretaria de Educação e Cultura do Recife.

Anúncio do Cinema Educativo Permanente, com Mostra Recifense de Super 8, em 1975

Em três dias, foram exibidos 32 filmes pernambucanos, com cerca de mil pessoas por noite que votaram nos seus filmes preferidos. Os realizadores ganharam crédito para a compra de filmes virgens, revelação e sonorização. 

Em 1976, é criado o Grupo de Cinema Super 8 de Pernambuco, que se consolida, como entidade de apoio à produção perante o poder público. Essa iniciativa realizou diversas mostras e até o I Festival de Cinema Super 8, realizado com o apoio do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (futura Fundaj) e do Governo de Pernambuco.

Movimentado marcado pela liberdade

O Super 8 pernambucano chegou a aparecer em festivais internacionais, sendo tema de conferências da Fundaj. Com tamanha visibilidade, também sofreu censura em festivais – um dos apelos do formato independente era justamente a liberdade, visto que muitas mostras não eram oficiais.

Essa “liberdade” estava na abordagem de temas políticos ou controversos (um dos maiores curtas dessa fase é “O Palhaço Degolado” (1976), de Jomard Muniz de Britto, que faz sátira a grandes intelectuais, como Gilberto Freyre.

Frame de O Palhaço Degolado, De Jommard Muniz de Brito, em 1976

Contudo, não ficava apenas nas temáticas, os filmes não tinham uma narrativa comum, com atores encenando uma história que tinha “início, meio e fim”. Tratava-se de um movimento realmente experimental, com estéticas, textos, movimentos e cores diferentes do cinema comercial.

Além do “Palhaço”, outros filmes importantes do circuito são “El Barato” (1972), de Kátia Mesel, “Valente é o Galo” (1974), de Fernando Spencer,  “Robin Holywood” (1977), de Amin Stepple, “Esses Onze Aí” (1978) e “O coração do Cinema” (1980), ambos de Paulo Cunha e Geneton Moraes Neto, “Propaganda” (1980), de Celso Marconi,  “Estética de camelô” (1982), de Paulo Bruscky e Daniel Santiago.

Celso Marconi, Jomard Muniz de Brito e Aristides Guimarães, realizadores do Ciclo Super 8

Como chegou ao fim?

Assim como no início, o fim do ciclo Super 8 se deu por questões tecnológicas. A Kodak parou de fabricar a bitola pois a fabricação já não compensava mais os cursos. 

Além disso, a agência de comércio exterior do Governo Federal considerou os equipamentos supérfluos, proibindo a sua importação. Com isso, era necessário realizar um depósito de 100% do valor da mercadoria para importar. A carestia fez com que fosse mais barato filmar em 16mm (bitolas tradicionais).

“Morte no Capibaribe”, de 1983, filme de Paulo Caldas

O considerado “último filme” do ciclo é “Morte no Capibaribe” (1983) de Paulo Caldas. Coincidentemente, esse cineasta, junto a Lírio Ferreira, foram responsáveis pela retomada do cinema pernambucano em 1997, com “Baile Perfumado”.

Legado

Bar Super 8, no Recife, durante exposição de Katia Mesel

O legado desse ciclo ecoa até hoje, não apenas nas telas, mas na mentalidade colaborativa que impulsionou iniciativas no campo da tecnologia e das artes. Essa mesma mentalidade de “fazer muito com pouco” ressoa em iniciativas como o Vale da Areia, pioneira na produção de microcomputadores no Nordeste, no próprio movimento manguebeat, e no passo de cada startup em rumo ao futuro.

Atualmente, existe no Centro do Recife um bar “Super 8”. Localizado no meio da Rua Mamede Simões, em Santo Amaro, esse misto de boteco e cineclube faz exibições e encontros com realizadores do cinema pernambucano nas quartas e quintas, às 20h.

Cinema do Porto

Quem quiser assistir a alguns dos filmes citados, pode acessar o acervo digital da Cinemateca Pernambucana, da Fundação Joaquim Nabuco.

Para apreciar um cinema de qualidade, também existe sala do Cinema da Fundação no último andar da sede do Núcleo de Gestão do Porto Digital no Bairro do Recife, o famoso “prédio do Porto Digital”. A programação está disponível nas redes da instituição.

  • Esse conteúdo usou informações do livro “O Cinema Super 8 Em Pernambuco”, de Alexandre Figueirôa, que também fica como sugestão de leitura.

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