Ao tombar o conjunto urbanístico do Bairro do Recife, em 1998, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) considerou a sua diversidade de estilos e traçados.
Essa variedade ia desde a arquitetura eclética, predominante das reformas do início do século 20, passando por vestígios do passado colonial e também nas intervenções de arquitetura moderna e contemporânea.
Essa arquitetura moderna está, por exemplo, na própria sede do Núcleo de Gestão do Porto Digital, que já foi a sede do Bandepe, ou na sede espelhada do Grupo João Santos, onde funcionou por muito tempo um prédio eclético que foi agência do Banco do Brasil.
Um edifício, no entanto, conseguiu a façanha de ser eclético e moderno ao mesmo tempo. Isso porque ele carregava, simultaneamente, duas fachadas.
O Edifício Luciano Costa, localizado no número 170 da Rua Dona Maria César, bem próximo aos mais imponentes edifícios do bairro, é o tema deste texto da série “Memórias no Concreto – Histórias de Prédios do Bairro do Recife“.
A desvalorização do ecletismo
Ocupando uma grande quadra de forma triangular, este imóvel foi erguido durante os “Planos de Melhoramentos e Reforma do Porto e do Bairro do Recife” (1909 e 1926), que tinha como objetivo dar ares parisienses à capital pernambucana. Esse mesmo fenômeno ocorreu em outras capitais, como o Rio de Janeiro.
No começo do século 20, o prédio tinha uma bela cúpula de ferro no ângulo voltado para Avenida Rio Branco, conforme mostra a imagem abaixo. Nessa época, o edifício foi ocupado por instituições bancárias como Banco do Recife e Banco Agrícola e Comercial de Pernambuco.
Apesar de ser admirada na atualidade, a arquitetura eclética não tinha reconhecimento patrimonial ou valor histórico durante a maior parte do século passado, sobretudo entre os arquitetos que seguiam a escola modernista.
Os defensores dessa falta de valor acreditavam que o ecletismo não era uma “tradição” ou uma “evolução” da história da arquitetura, mas sim um período de “hiato” ou “transição”, pois não tinha originalidade, sendo uma mistura de estilos do passado para a criação de uma nova linguagem.
Com o começo do declínio da vida social e econômica do Bairro do Recife, já na década de 1950, o ecletismo começou a ser uma espécie de sinônimo ou vínculo àquele cenário de degradação.
Solução modernista
No final dos anos 1950, os proprietários procuraram o arquiteto português Delfim Amorim (1917-1972), uma referência na consolidação da arquitetura modernista no Recife, para dar um aspecto moderno ao edifício.
De acordo com a jornalista Letícia Lins, Delfim teria se recusado a destruir a fachada justificando que “um dia essa fachada eclética será valorizada”.
Em vez de uma reforma mais brutal, como ocorreu com outros imóveis, Delfim encontrou uma solução engenhosa: criou uma fachada sobreposta de cobogós (ícone da modernidade brasileira), sustentada por uma trama estrutural de vigas e pilares de concreto.
Assim, o prédio foi apelidado de “véu de noiva“, já que os cobogós cobriam o seu verdadeiro “rosto” eclético.
É a partir dos anos 1960, após essa reforma, que esse imóvel que passou a ser mencionado em anúncios de jornais pelo nome de “Edifício Luciano Costa“, assim como o seu logradouro tornou-se “Rua Dona Maria César, 170”, evidenciando que a reforma deve ter alterado o seu local de entrada principal.
Nesta mesma década, ele abriga a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID); a Superintendência Regional Nordeste da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA); a Companhia de Eletrificação Rural do Nordeste; além de empresas de seguros.
Na década de 1970, o edifício abrigou escritórios da Cia Açucareira de Goiana (Usinas Nossa Senhora das Maravilhas); da Agência Marítima Amazônia; e da seguradora Vera Cruz. Nos anos 1980, existem registros do funcionamento de outras seguradoras, como a Cia. Internacional dos Seguros.
A reviravolta do eclético
Nos anos 1990, a gestão do governador Jarbas Vasconcelos (1999-2006) conseguiu atrair a iniciativa privada para a Rua do Bom Jesus, inclusive com financiamento para a reforma dos casarões, quase todos em péssimo estado, numa parceria com a Fundação Roberto Marinho (no Projeto Cores da Cidade).
A Bom Jesus, bem próxima do imóvel deste texto, logo transformou-se em um polo de cultura, lazer e turismo, com o surgimento de bares, restaurantes e museus (o Sinagoga Kahal Zur Israel).
Isso fez com que os ares mudassem no Bairro do Recife e a arquitetura eclética passou a ser mais valorizada. Em 1999, visando as possibilidades desse novo momento, os proprietários do imóvel solicitaram à Prefeitura um apoio para a remoção dos cobogós e restauração da estrutura original.
Os proprietários ainda traziam argumentos mais práticos, apontando o risco de desabamento da estrutura que sustentava os cobogós e os possíveis impactos à saúde pública, já que o espaço entre as fachadas estava servido como abrigo para pombos.
Segundo a arquiteta Renata Cabral, a 5ª Superintendência Regional do Iphan elaborou um parecer favorável à retirada dos cobogós, ainda em 1999. Além das questões estruturais, argumentou-se que a fachada foi colocada para preservar essa arquitetura eclética original.
Briga pela retirada do ‘véu’
No entanto, é necessário relembrar que o conjunto urbanístico do Bairro do Recife havia sido tombado um ano antes, por isso a retirada dessa fachada moderna suscitou uma grande controvérsia.
Quem era contra a reforma apontava que o tombamento do bairro considerou toda a diversidade de estilos da área, incluindo o Edifício Luciano Costa, que seria um verdadeiro testemunho das mudanças históricas, resultando em um hibridismo particular. Um dos contestadores era o arquiteto e professor da UFPE Luiz Amorim, filho de Delfim Amorim.
O caso foi parar no Ministério Público. A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e a Prefeitura do Recife passaram a defender uma solução que mantivesse ambas as fachadas, pois acreditavam que o cobogó havia sido incorporado de vez à arquitetura.
Em 2002, com o falecimento dos proprietários, a neta – arquiteta e sensível à preservação dos cobogós – assumiu os negócios. Ela chegou a desenvolver, junto a Luiz Amorim, um projeto que incluía a iluminação da fachada original com holofotes à noite, simbolicamente “tirando o véu” apenas no período noturno.
Nesse vai-e-vem, a discussão se estendeu por muitos anos, até que, em 2005, em 2005, um pedaço da estrutura desabou, ocasionando a interdição do prédio. Em 2006, a Prefeitura do Recife incorpora a opinião do Iphan em seu ofício que autoriza a demolição dos cobogós.
Hoje, o Edifício Luciano Costa funciona como uma espécie de galeria, com diversos empreendimentos, e a arquitetura eclética ressurgiu como testemunho de um Recife que busca conciliar memória e modernidade.
O “véu de noiva”, embora ausente fisicamente, permanece como uma memória das transformações culturais e arquitetônicas que moldaram o Recife.
- O texto usou informações do artigo “E o Iphan retirou o véu da noiva e disse sim – Ecletismo e modernismo no edifício Luciano Costa”, da arquiteta Renata Cabral.
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