Eleita a terceira rua mais bonita do mundo pela revista norte-americana Architectural Digest, a Rua do Bom Jesus é hoje um dos principais cartões-postais do Recife – e um dos pontos turísticos mais simbólicos de Pernambuco.

Rua do Bom Jesus tendo ao fundo a Torre Malakoff Gaensly Guilherme 1880

Embora situada no berço da cidade e marcada por uma história rica, a via também atravessou décadas de abandono, especialmente entre os anos 1960 e 1980, período em que o centro histórico do Recife sofria com o êxodo de serviços e o esvaziamento urbano.

Foi nesse cenário que surgiu um experimento de reabilitação urbana articulado entre o poder público e a iniciativa privada. O projeto resultou na revitalização de uma das ruas mais emblemáticas da cidade, criando um modelo replicável para outras áreas do bairro – e para o Centro do Recife como um todo.

Raízes históricas

Arco do Bom Jesus em litografia a mão de W. Bassler, de 1848

Com a ocupação holandesa, iniciada em 1630, e a liberdade religiosa então permitida, famílias judias se estabeleceram em Pernambuco, ocupando boa parte da região que hoje corresponde à Rua do Bom Jesus. Entre elas, destacou-se Duarte Saraiva, comerciante português que adquiriu, em 1635, o terreno onde a rua começou a se formar. À época, era chamada de “Rua do Bode” (Bockestraet).

Com o crescimento da comunidade judaica e sua influência na vida econômica local, a via passou a ser conhecida como “Rua dos Judeus”. Ali foi erguida a primeira sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel, que funcionou até 1654. Após escavações arqueológicas em 1999, o espaço deu origem a um museu que preserva a memória da sinagoga original.

Também havia ali o Arco do Bom Jesus, uma espécie de portal de entrada para essa parte da Ilha do Recife. Após a expulsão dos holandeses, os portugueses rebatizaram a rua como “Rua da Cruz”. Com o tempo, o nome do arco prevaleceu, dando origem à denominação atual. O arco foi demolido em 1850.

Jaime Gusmão, Jarbas Vasconcelos, Jorge Martins, Byron Sarinho e Amelia Reynaldo, durante apresentação de projeto, em 1988 (Crédito: Amélia Reynaldo)

Da decadência ao planejamento urbano

A partir dos anos 1970, com a expansão da cidade para as zonas Sul e Norte, o Bairro do Recife entrou em processo de esvaziamento. A transferência de atividades portuárias para Suape também contribuiu para o declínio da região.

“Na Rua do Bom Jesus encontravam-se bêbados, mulheres e comerciantes com suas barracas. Observavam-se crianças dormindo nas ruas. À noite, viam-se luzes coloridas nas pensões. O Bairro do Recife era o menos populoso e o mais pobre entre os bairros do Centro”, escreveu a pesquisadora Júlia Amorim de Melo, no estudo Mais Além da Rua do Bom Jesus.

Rua do Bom Jesus (Crédito: Porto Digital)

No fim da década de 1980, a gestão de Jarbas Vasconcelos na Prefeitura do Recife criou o Escritório de Reabilitação do Bairro do Recife. No entanto, os planos não avançaram, em parte por não dialogarem com atores econômicos relevantes nem detalharem a implementação das ações.

Em 1988, o governador Joaquim Francisco lançou um plano de desenvolvimento que posicionava o bairro como destino turístico. Inspirado na revitalização de Nova Orleans (EUA), o Plano de Revitalização do Bairro do Recife ficou pronto em 1992.

No ano seguinte, Jarbas retornou à prefeitura e instituiu parcerias com investidores privados. Surgia então o “Polo Bom Jesus”, que englobava também a Rua do Apolo e a Praça do Arsenal – até então apelidado de “Praça dos Lisos”, pois reunia pessoas que esperavam para ser chamadas para trabalhos no Porto.

Mapa em que o Plano de Reabilitação do Bairro do Recife separa a ilha em polos de interesse – a Rua do Bom Jesus está com a cor verde

Intervenção estratégica

A virada concreta começou com a entrada da Fundação Roberto Marinho, que propôs o projeto “Cores da Cidade”, em parceria com as Tintas Ypiranga. Inspirado em ações realizadas no Rio de Janeiro, o projeto previa a restauração cromática das fachadas históricas com cores vibrantes.

A adesão dos proprietários, no entanto, foi limitada. Para contornar isso, a Prefeitura expandiu o escopo do projeto, restaurando prédios estratégicos como a Associação Comercial e a antiga Bolsa de Valores, no entorno do Marco Zero.

O passo mais decisivo, porém, foi a criação de uma espécie de “escritório de negócios”, responsável por intermediar o contato entre investidores interessados em instalar novos empreendimentos e os donos dos imóveis.

Rua do Bom Jesus (Crédito: Porto Digital)

A Prefeitura também realizou melhorias urbanas: calçamento, fiação subterrânea e a desapropriação de cinco prédios em ruínas na própria Rua do Bom Jesus.

Entre 1993 e 1996, segundo os pesquisadores Sílvio Mendes Zancheti e Norma Lacerda, o poder público investiu R$ 2,66 milhões na área do Polo Bom Jesus (cerca de 10% do bairro). Já a iniciativa privada investiu R$ 2,85 milhões. Ou seja, para cada R$ 1,00 público, o setor privado investiu R$ 1,07.

Renascer cultural e turístico

Com o casario recuperado e a chegada de bares e restaurantes, a Rua do Bom Jesus se transformou, ao longo dos anos 1990, em polo de entretenimento e turismo.

Shows e apresentações culturais passaram a ser realizados em palcos montados no fim da rua, com nomes como Antônio Nóbrega e Alceu Valença. Mais adiante, eventos como o Carnaval tomariam conta da vizinha Praça do Arsenal.

Rua do Bom Jesus (Crédito: Bruno Lima – MTUR)

Ao mesmo tempo, a Rua da Moeda passou por uma ocupação espontânea, marcada pela abertura de bares de perfil alternativo e frequentados por um público mais jovem. Essa dinâmica levou a geração que viveu aquele período a dividir simbolicamente a cena noturna local entre uma “Berlim Ocidental”, representada pela Rua do Bom Jesus, e uma “Berlim Oriental”, associada à Moeda.

Com o tempo, a Moeda também passou a receber estímulos culturais importantes, como o festival Rec-Beat e o bar Pina de Copacabana, que se tornaram referências da geração mangue.

A reabilitação da Bom Jesus mostrou que era possível revitalizar o Bairro do Recife e atrair investimentos sustentáveis. Em 2000, o governo estadual de Jarbas Vasconcelos fortaleceu essa visão ao fundar o Porto Digital, parque tecnológico que reabilitou imóveis para abrigar empresas de tecnologia da informação, começando pela sede da Rua do Apolo, nº 181.

Guia gastro cultural

Guia interativo de estabelecimentos do Bairro do Recife é lançado pelo Porto Digital

Hoje, o Bairro do Recife é um dos principais polos boêmios e gastronômicos do Centro. Em 2024, o Porto Digital lançou um guia interativo com os estabelecimentos do bairro: bares, cafés, restaurantes, espaços culturais e estacionamentos.

O levantamento identificou mais de 100 pontos de interesse. O mapeamento mais recente inclui 42 restaurantes, 20 bares, 39 cafés/lanchonetes, 1 cinema, 3 teatros, 8 museus ou galerias de arte e 12 estacionamentos. O acesso ao guia é gratuito e está disponível online.

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