Eleita a terceira rua mais bonita do mundo pela revista norte-americana Architectural Digest, a Rua do Bom Jesus é hoje um dos principais cartões-postais do Recife – e um dos pontos turísticos mais simbólicos de Pernambuco.

Embora situada no berço da cidade e marcada por uma história rica, a via também atravessou décadas de abandono, especialmente entre os anos 1960 e 1980, período em que o centro histórico do Recife sofria com o êxodo de serviços e o esvaziamento urbano.
Foi nesse cenário que surgiu um experimento de reabilitação urbana articulado entre o poder público e a iniciativa privada. O projeto resultou na revitalização de uma das ruas mais emblemáticas da cidade, criando um modelo replicável para outras áreas do bairro – e para o Centro do Recife como um todo.
Raízes históricas

Com a ocupação holandesa, iniciada em 1630, e a liberdade religiosa então permitida, famílias judias se estabeleceram em Pernambuco, ocupando boa parte da região que hoje corresponde à Rua do Bom Jesus. Entre elas, destacou-se Duarte Saraiva, comerciante português que adquiriu, em 1635, o terreno onde a rua começou a se formar. À época, era chamada de “Rua do Bode” (Bockestraet).
Com o crescimento da comunidade judaica e sua influência na vida econômica local, a via passou a ser conhecida como “Rua dos Judeus”. Ali foi erguida a primeira sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel, que funcionou até 1654. Após escavações arqueológicas em 1999, o espaço deu origem a um museu que preserva a memória da sinagoga original.
Também havia ali o Arco do Bom Jesus, uma espécie de portal de entrada para essa parte da Ilha do Recife. Após a expulsão dos holandeses, os portugueses rebatizaram a rua como “Rua da Cruz”. Com o tempo, o nome do arco prevaleceu, dando origem à denominação atual. O arco foi demolido em 1850.

Da decadência ao planejamento urbano
A partir dos anos 1970, com a expansão da cidade para as zonas Sul e Norte, o Bairro do Recife entrou em processo de esvaziamento. A transferência de atividades portuárias para Suape também contribuiu para o declínio da região.
“Na Rua do Bom Jesus encontravam-se bêbados, mulheres e comerciantes com suas barracas. Observavam-se crianças dormindo nas ruas. À noite, viam-se luzes coloridas nas pensões. O Bairro do Recife era o menos populoso e o mais pobre entre os bairros do Centro”, escreveu a pesquisadora Júlia Amorim de Melo, no estudo Mais Além da Rua do Bom Jesus.

No fim da década de 1980, a gestão de Jarbas Vasconcelos na Prefeitura do Recife criou o Escritório de Reabilitação do Bairro do Recife. No entanto, os planos não avançaram, em parte por não dialogarem com atores econômicos relevantes nem detalharem a implementação das ações.
Em 1988, o governador Joaquim Francisco lançou um plano de desenvolvimento que posicionava o bairro como destino turístico. Inspirado na revitalização de Nova Orleans (EUA), o Plano de Revitalização do Bairro do Recife ficou pronto em 1992.
No ano seguinte, Jarbas retornou à prefeitura e instituiu parcerias com investidores privados. Surgia então o “Polo Bom Jesus”, que englobava também a Rua do Apolo e a Praça do Arsenal – até então apelidado de “Praça dos Lisos”, pois reunia pessoas que esperavam para ser chamadas para trabalhos no Porto.

Intervenção estratégica
A virada concreta começou com a entrada da Fundação Roberto Marinho, que propôs o projeto “Cores da Cidade”, em parceria com as Tintas Ypiranga. Inspirado em ações realizadas no Rio de Janeiro, o projeto previa a restauração cromática das fachadas históricas com cores vibrantes.
A adesão dos proprietários, no entanto, foi limitada. Para contornar isso, a Prefeitura expandiu o escopo do projeto, restaurando prédios estratégicos como a Associação Comercial e a antiga Bolsa de Valores, no entorno do Marco Zero.
O passo mais decisivo, porém, foi a criação de uma espécie de “escritório de negócios”, responsável por intermediar o contato entre investidores interessados em instalar novos empreendimentos e os donos dos imóveis.

A Prefeitura também realizou melhorias urbanas: calçamento, fiação subterrânea e a desapropriação de cinco prédios em ruínas na própria Rua do Bom Jesus.
Entre 1993 e 1996, segundo os pesquisadores Sílvio Mendes Zancheti e Norma Lacerda, o poder público investiu R$ 2,66 milhões na área do Polo Bom Jesus (cerca de 10% do bairro). Já a iniciativa privada investiu R$ 2,85 milhões. Ou seja, para cada R$ 1,00 público, o setor privado investiu R$ 1,07.
Renascer cultural e turístico
Com o casario recuperado e a chegada de bares e restaurantes, a Rua do Bom Jesus se transformou, ao longo dos anos 1990, em polo de entretenimento e turismo.
Shows e apresentações culturais passaram a ser realizados em palcos montados no fim da rua, com nomes como Antônio Nóbrega e Alceu Valença. Mais adiante, eventos como o Carnaval tomariam conta da vizinha Praça do Arsenal.

Ao mesmo tempo, a Rua da Moeda passou por uma ocupação espontânea, marcada pela abertura de bares de perfil alternativo e frequentados por um público mais jovem. Essa dinâmica levou a geração que viveu aquele período a dividir simbolicamente a cena noturna local entre uma “Berlim Ocidental”, representada pela Rua do Bom Jesus, e uma “Berlim Oriental”, associada à Moeda.
Com o tempo, a Moeda também passou a receber estímulos culturais importantes, como o festival Rec-Beat e o bar Pina de Copacabana, que se tornaram referências da geração mangue.
A reabilitação da Bom Jesus mostrou que era possível revitalizar o Bairro do Recife e atrair investimentos sustentáveis. Em 2000, o governo estadual de Jarbas Vasconcelos fortaleceu essa visão ao fundar o Porto Digital, parque tecnológico que reabilitou imóveis para abrigar empresas de tecnologia da informação, começando pela sede da Rua do Apolo, nº 181.
Guia gastro cultural

Hoje, o Bairro do Recife é um dos principais polos boêmios e gastronômicos do Centro. Em 2024, o Porto Digital lançou um guia interativo com os estabelecimentos do bairro: bares, cafés, restaurantes, espaços culturais e estacionamentos.
O levantamento identificou mais de 100 pontos de interesse. O mapeamento mais recente inclui 42 restaurantes, 20 bares, 39 cafés/lanchonetes, 1 cinema, 3 teatros, 8 museus ou galerias de arte e 12 estacionamentos. O acesso ao guia é gratuito e está disponível online.
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