Durante séculos, quem passava em frente aos imóveis de números 197 e 203 da Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife, desconhecia que aquelas fachadas guardavam um marco de relevância mundial: ali funcionou a primeira sinagoga das Américas.
A comprovação de que a Sinagoga Kahal Zur Israel operou nesse local entre 1637 e 1654 só aconteceu em 1999, inserida em um contexto mais amplo de iniciativas públicas e privadas voltadas ao resgate da história pernambucana e à valorização do Bairro do Recife.

Esse esforço envolveu profissionais de áreas diversas, sobretudo história, arquitetura e arqueologia, cujo trabalho foi fundamental para revelar detalhes desse patrimônio.
A história da sinagoga também evidencia como o Bairro do Recife, berço da cidade, abriga sob o solo vestígios de séculos passados, ainda à espera de serem descobertos.
Recife sob o domínio holandês: tolerância e transformações

Embora a confirmação arqueológica tenha ocorrido no fim do século XX, o tema começou a ganhar corpo já na década de 1940, com o trabalho do historiador José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002), autor de Tempo dos Flamengos – Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil (1947).
Gonsalves de Mello se tornou o maior especialista no período da ocupação holandesa, produzindo diversos estudos baseados em pesquisas nos arquivos dos Países Baixos, de Portugal e da Espanha (Simancas, Sevilha e Ilhas Canárias).
Os holandeses ocuparam Pernambuco de 1630 a 1654, estabelecendo liberdade religiosa, o que atraiu judeus que fugiam de perseguições na Europa. Muitos deles se instalaram justamente na Rua do Bom Jesus, então conhecida como “Rua dos Judeus”.

Após a expulsão dos holandeses, o imóvel que abrigava a sinagoga, assim como diversas outras propriedades ligadas à comunidade judaica, foi transferido para João Fernandes Vieira, figura central no processo de retomada do território pelos portugueses.
Em 1679, o prédio acabou doado aos padres oratorianos, que destruíram os vestígios da antiga sinagoga e passaram a alugar o espaço para atividades comerciais. Ao longo dos séculos, o edifício teve múltiplas funções, chegando à década de 1990 abrigando uma loja de material elétrico.
Antes de 1999, já se sabia, por estudos históricos, da existência de uma sinagoga no local, embora não houvesse certeza absoluta sobre sua localização exata.

Um passo decisivo nesse sentido veio com o trabalho do arquiteto e historiador José Luiz Mota Menezes (1936-2021), autor do Atlas Histórico e Cartográfico do Recife, que documenta a evolução urbana da cidade desde sua fundação, em 1537, até o ano 2000.
Foi Mota Menezes, ao sobrepor mapas antigos e atuais, quem identificou a área precisa onde se situava a sinagoga nas imediações dos imóveis de números 197 e 203.
Arqueologia em cena no Bairro do Recife

Na década de 1990, já no contexto de revitalização da Rua do Bom Jesus, articulou-se uma parceria entre a Federação Israelita de Pernambuco, o Ministério da Cultura e a Prefeitura do Recife.
Os imóveis, então pertencentes à Santa Casa da Misericórdia, foram desapropriados pela Prefeitura e cedidos à federação judaica em regime de comodato por 20 anos, prazo renovado em 2020.
O projeto de escavação e transformação do local em museu foi financiado pelo Banco Safra, via Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), com custo estimado na época em R$ 800 mil.

Coube à equipe de arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco, coordenada pelo professor Marcos Albuquerque, conduzir as escavações, com sete técnicos e sete operários. O trabalho ocorreu de outubro de 1999 a fevereiro de 2000.
Logo nas primeiras semanas, os arqueólogos constataram que, há 320 anos, a Rua do Bom Jesus era, no mínimo, 70 centímetros mais baixa do que hoje.
Entre as descobertas, estava parte das antigas muralhas que protegiam a cidade no século XVII — uma das quais chegou a ser incorporada como parede de um dos imóveis. Mas o achado mais significativo para a comunidade judaica foi a mikvá, a piscina usada no ritual de purificação judaico.

“Encontramos uma espécie de cacimba e um espaço com um buraco bastante grande que poderia ser destinado ao banho ritual. Isso chamou nossa atenção porque, no Brasil, não havia tradição de se construir cacimbas dentro das casas; elas normalmente ficavam do lado de fora”, explica o professor Marcos, ao Jornal Digital.
“Nós, arqueólogos, não éramos especialistas em religião. Por isso, foi convidado um tribunal rabínico, especialista em mikvas, que fez diversas medições e concluiu tratar-se realmente de um espaço para o banho cerimonial. A piscina tinha exatamente as medidas definidas no Velho Testamento para esse ritual. A partir daí, os rabinos realizaram uma cerimônia e anunciaram publicamente que se tratava da sinagoga”, prossegue o pesquisador.
O projeto de restauro buscou reconstruir o interior da sinagoga tal como se imagina que era no século XVII. O arquiteto José Luiz Mota Menezes viajou à Holanda para estudar sinagogas da mesma época, pesquisando pisos, mobiliário e demais elementos arquitetônicos.

A reinauguração da Sinagoga Kahal Zur Israel ocorreu em 18 de março de 2002, consolidando o espaço como centro cultural e turístico que projetou a Rua do Bom Jesus no mapa internacional.
“Aquele espaço representou, no passado, um momento de tolerância e respeito à diversidade religiosa. O Recife teve esse símbolo em um período tão sombrio na Europa”, comenta Jader Tachlitsky, coordenador de comunicação da sinagoga.
Escavações revelaram mais tesouros soterrados
Além da mikvá, as escavações permitiram conhecer melhor como era o Bairro do Recife nos primeiros séculos da colonização. Foram encontradas partes das muralhas que protegiam a cidade, junto à primitiva margem esquerda do Rio Beberibe, evidência de que o rio chegava muito mais próximo do local antes dos sucessivos aterros.
Isso levou ao entendimento de que a Rua do Bom Jesus não existia no início do período colonial. O Rio Beberibe tinha seu curso exatamente nessa área e provavelmente os judeus começaram a aterrar as suas margens e conquistar terreno.

Também surgiram mais de 40 mil fragmentos de objetos, incluindo cachimbos portugueses e holandeses, cerâmica, louça, ossos de animais e peças metálicas.
“Muito desse material não tinha relação direta com a sinagoga, mas sim com as atividades portuárias da área. À medida que os aterros avançaram, esses objetos foram soterrados e preservados”, explica Marcos Albuquerque.
As escavações realizadas nesse período desencadearam um movimento de resgate histórico, revelando, descoberta após descoberta, um sistema de defesa do século XVII que se estendia por diversos pontos da ilha.
Boa parte dessas descobertas ocorreu justamente quando o Porto Digital chegou ao bairro, exigindo a instalação de infraestrutura moderna, como redes de fibra óptica. “Lembro-me de um piso que achamos na Avenida Rio Branco, do século XIX, a 1,30 metro abaixo do atual solo”, relata Marcos.

Tamanha é a riqueza arqueológica da ilha que o Ministério Público Federal recomenda que qualquer intervenção no solo do Bairro do Recife seja acompanhada por profissionais da área.
O museu
Atualmente, a Sinagoga Kahal Zur Israel está aberta à visitação de terça a domingo, das 14h às 17h, estendendo-se até as 18h aos domingos. O espaço recebe grupos escolares de instituições públicas e privadas e promove cursos diversos.
Há uma exposição permanente dedicada à história dos judeus no Recife no século XVII, além de mostras temporárias, como a atual “Recife-Nova York, essa história começou aqui”.
Em tempo: os judeus expulsos do Recife migraram para as Antilhas, para a Holanda e para os Estados Unidos, onde ajudaram a construir a Nova Amsterdã — atual Nova York. Um elo histórico que alimenta, com razão, a autoestima recifense.
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