O logotipo do Porto Digital no topo do Edifício Vasco Rodrigues, o icônico espigão cinza do Cais do Apolo, já faz parte da paisagem do Bairro do Recife. Não é raro que ele gere a falsa impressão de que o parque tecnológico teria sido fundado ali.

A sua sede administrativa, instalada no último andar desse edifício moderno, nasceu, na verdade, em prédios mais modestos em escala, mas de grande valor histórico e arquitetônico.

Há 25 anos, a primeira sede do Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD) funcionou em um imóvel na esquina da Rua do Bom Jesus com a Rua Domingos José Martins, onde também operava o antigo Escritório de Revitalização do Bairro do Recife (ERBR), da Prefeitura do Recife.

Mas o primeiro imóvel totalmente reabilitado para receber a organização — e que por isso pode ser considerado a “primeira casa” do Porto Digital — foi o de número 181 da Rua do Apolo.

Rua do Apolo, 181, antes e depois da reabilitação do Porto Digital

Foi nele que a administração do parque viveu os primeiros anos até mudar-se, em 2013, para o espigão projetado por Acácio Gil Borsoi. O endereço também sediou a primeira incubadora de empresas do Porto Digital, onde ideias ligadas à Tecnologia da Informação e Comunicação podiam ser maturadas até se transformarem em negócios.

A construção é composta por um conjunto de três imóveis (Rua do Apolo, 175 e 181, e Avenida Cais do Apolo, 220). À época, o espaço era conhecido como C.A.I.S do Porto; hoje, abriga o Portomídia, braço voltado à economia criativa.

Nos anos 2000, a reforma foi custeada com recursos do Governo de Pernambuco, já que o primeiro contrato de gestão do Porto Digital previa o repasse de verbas justamente para recuperar imóveis e atrair investidores — um verdadeiro pontapé inicial.

Um imóvel que acompanhou as mudanças do Recife

Casas e depósitos no Cais do Apolo, em Recife, em 1957 (Crédito: Acervo Museu da Cidade do Recife)

O projeto de restauro, em 2001, foi antecedido por uma pesquisa histórica que apontou que o sobrado provavelmente surgiu como habitação de famílias de elevado poder aquisitivo.

Vale lembrar que o lado do imóvel voltado para a Avenida Cais do Apolo, antes dos aterros iniciados em 1959, dava diretamente para o Rio Capibaribe. Essas intervenções possibilitaram a construção de prédios como os atuais da Prefeitura do Recife, da Justiça do Trabalho e da Polícia Federal.

“Era um prédio suntuoso e podemos perceber isso pelo desenho da fachada, típico de construções nobres. A parte de trás tinha um armazém de estivas que dava para o Rio Capibaribe, com espaço para conexão com barcos”, explica o arquiteto e urbanista Leonardo Guimarães, que era gerente de projetos no NGPD à época.

Originalmente, o imóvel era único, mas foi desmembrado ao longo da história por um de seus proprietários.

Sindicato dos Estivadores ocupou primeiro andar da Rua do Apolo 181, em 1916

Em arquivos de jornais digitalizados, o Jornal Digital identificou usos para o endereço a partir da década de 1950, como sede da Companhia da Indústria e Comércio Joaquim Soares, e dos anos 1960, quando recebeu o Sindicato dos Estivadores e Trabalhadores em Carvão de Pernambuco ou o Escritório do Açúcar Polar.

Por que a Rua do Apolo foi escolhida?

A escolha desse prédio, lembra Leonardo Guimarães — que se tornou diretor executivo do Porto Digital em 2007 —, ocorreu pela oferta imobiliária da época. O casarão estava à venda e acabou sendo negociado e adquirido pelo NGPD, então presidido por Fábio Silva.

A decisão também seguia um conceito de “âncora” do urbanismo. Ao ocupar aquele imóvel, o parque tecnológico ajudaria a estimular o fluxo de pessoas, serviços e negócios no entorno.

Projeto de habitação na Rua do Apolo, em 1988 Crédito Acervo Amélia Reynaldo

É importante considerar que os esforços públicos de revitalização do Bairro do Recife começaram ainda nos anos 1980. Até aquele momento, apenas a Rua do Bom Jesus havia alcançado relativo sucesso, nos anos 1990, com bares, lazer e turismo. Mas, em 2000, ela já não vivia o mesmo auge.

“O sonho de consumo do Porto Digital era ocupar a Capitania dos Portos, próxima da Praça do Arsenal, e até houve tratativas com a Marinha. Era uma área muito grande e cogitava-se transferir também o Centro de Informática da UFPE para lá, junto com o CESAR. O prédio comportaria tudo isso. Mas não se chegou a um consenso com a Marinha, e a UFPE não gostou da ideia de o CIn deixar o campus”, recorda Guimarães.

O desafio de recuperar um casarão em ruínas

Fachada do imóvel de número 181 da Rua do Apolo antes de reabilitação (Crédito: Iphan)

Segundo a arquiteta e gerente de infraestrutura do Núcleo de Gestão do Porto Digital, Julia Machado, o imóvel encontrava-se em avançado estado de degradação no ano 2000: “Sem cobertas, pisos intermediários em madeira completamente destruídos, esquadrias das fachadas descaracterizadas, enfim, um completo reflexo do estado de abandono do bairro”.

“Após a reforma, o imóvel passou a ter 2.335,35 metros quadrados de área, com modernas instalações, resultantes de projetos complementares alinhados com a arquitetura do edifício”, registra Machado no livro Porto Digital – Inovação e Preservação no Centro Histórico do Recife.

Guimarães também lembra dos desafios dessa obra: “Quando o imóvel foi dividido ao meio, no passado, o proprietário refez os pisos em níveis completamente diferentes. Tudo precisou ser nivelado. Foi desafiador no sentido de integrar os prédios, porque não fazia sentido colocar um elevador em cada um”, diz.

Imagem do ESIG Informações Geográficas do Recife mostra separação dos imóveis que formam o antigo C.A.I.S do Porto, atual Portomídia

Inicialmente, o NGPD adquiriu apenas um dos três imóveis. Posteriormente, comprou os outros dois, quando a reabilitação foi conduzida por Guimarães.

O arquiteto também assinou o restauro do armazém número 220 da Rua Bione, próximo à Praça Tiradentes, que passou a abrigar o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar). A recuperação desse imóvel trouxe uma movimentação inédita em décadas à parte norte da Ilha do Recife.

Esses dois edifícios, junto ao número 32 da Rua Vital de Oliveira — que recebeu a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado — formam a tríade inicial do Porto Digital na ilha.

Nova fase do Porto Digital na economia criativa

Após a transferência do NGPD para o Edifício Vasco Rodrigues, em 2013, o imóvel da Rua do Apolo, 181 passou a abrigar o Centro de Empreendedorismo e Tecnologias da Economia Criativa — Portomídia.

Esse braço expandiu a atuação do parque para a economia criativa, até então restrita à Tecnologia da Informação e Comunicação.

“Não foram realizadas grandes mudanças estruturais nos pavimentos superiores, que permaneceram abrigando as empresas do parque. Porém, o térreo foi alvo de uma grande transformação”, detalha Julia Machado.

Inaugurado em 2013, o Portomídia ofereceu suporte tecnológico a cadeias de negócios como cinema, vídeo, animação, multimídia, design, games, fotografia e música. Estruturou laboratórios de excelência para pós-produção — montagem, edição de som e correção de cor —, com softwares e equipamentos consolidados no mercado internacional.

Fachada do imóvel de número 181 da Rua do Apolo após a reabilitação (Crédito: Iphan)

Lá foram mixados sucessos como “Boi Neon” (2015) e “Divino Amor” (2017), de Gabriel Mascaro; “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho; além de “Noche de Fuego”, da mexicana Tatiana Huezo, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Atualmente, o espaço passa por nova reforma, patrocinada por BNDES, Instituto Neoenergia, Shell e Monsanto. A atualização permitirá que o Portomídia ocupe todo o prédio — antes, utilizava apenas 15% da área.

Outros imóveis do entorno, como os de números 169, 213 e 235, também foram revitalizados pelo NGPD. A Rua do Apolo abriga empresas, espaços de coworking, restaurantes e equipamentos culturais históricos, como o Teatro Apolo, o mais antigo da cidade.

Já o casarão de número 181 simboliza a estratégia que moldou o Porto Digital: preservar a memória do Bairro do Recife enquanto se projeta um futuro de inovação e desenvolvimento econômico.

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