A tecnologia blockchain, muitas vezes associada às criptomoedas, é muito mais do que apenas uma plataforma para transações financeiras digitais. Trata-se de um sistema de registro distribuído que promete revolucionar a maneira como os dados são armazenados, verificados e transferidos. Neste contexto, um dos principais atrativos da blockchain é a sua capacidade de promover a descentralização, transferindo o controle e a tomada de decisão de uma entidade centralizada para uma rede distribuída.

Essa característica pode ser utilizada, por exemplo, na rastreabilidade de produtos entre empresas de diferentes setores, incluindo sua origem e a trajetória para garantir autenticidade e transparência ao consumidor. A blockchain também pode ser aplicada em contratos inteligentes auto executáveis de acordo com seus termos (diretamente escritos em linhas de código) ou no registro e verificação da propriedade de bens. 

Ao promover a descentralização, ela oferece uma alternativa mais transparente, segura e democrática para sistemas centralizados. E à medida que sua adoção cresce em diversos setores, é provável que vejamos uma transformação profunda na maneira como a sociedade lida com dados, propriedade e confiança. Um desses setores, que vem ganhando mais atenção recentemente, é a ciência. 

Blockchain

Democratizando a Pesquisa

A Ciência Descentralizada, também conhecida como DeSci, representa uma abordagem inovadora e revolucionária para a condução de pesquisas científicas. Em vez de depender de instituições centralizadas, como universidades e laboratórios de pesquisa, a DeSci busca democratizar o processo científico, permitindo que qualquer pessoa, em qualquer lugar, contribua e participe da descoberta científica.

A ideia é simples, mas poderosa: ao descentralizar a ciência, como quer se fazer com as finanças, é possível eliminar barreiras, promover a colaboração e acelerar a inovação.Além disso, com o uso de blockchain, os resultados da pesquisa são imutáveis e facilmente verificáveis, garantindo a integridade dos dados. 

A plataforma Ethereum, por exemplo, tem sido uma defensora da DeSci – em especial, a possibilidade de diversificação das fontes de financiamento, que podem ir desde Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs) até doações pontuais e crowdfunding. 

No modelo atual, cientistas se candidatam às agências de financiamento para serem avaliados, um processo que pode incluir longos tempos de espera e suscetibilidade a preconceitos e políticas. A Ethereum defende que o surgimento da Web3 oferece uma alternativa promissora, com ferramentas de governança e incentivos tokenizados que poderiam transformar e democratizar o cenário de financiamento científico.

“O fato de que contratar uma revisão para um artigo por 48 horas pode custar mais de US$ 30, e o fato de que cientistas estão gastando mais tempo solicitando bolsas de pesquisa do que realmente fazendo ciência são apenas algumas das consequências do maior problema de incentivos incompatíveis entre instituições de pesquisa científica ao redor do mundo”, escreveu John Cumbers, CEO da SynBioBeta, em um artigo na Forbes.

Blockchain

Ponte Entre Financiadores e Pesquisadores

É aí que as DAOs podem desempenhar um papel crucial dentro da DeSci. Elas ajudam a criar um sistema descentralizado de financiamento e promovem a colaboração global entre pesquisadores, pacientes e investidores em todas as fases da pesquisa, desde o básico até o clínico, por meio de contratos inteligentes e moedas digitais para organizar tarefas, financiar projetos e democratizar o investimento em iniciativas científicas.

Através da criação de DAOs voltadas para o financiamento de pesquisas, a DeSci conecta pesquisadores a diversos stakeholders e financiadores em todo o mundo. Isso permite uma colaboração mais estreita entre pesquisadores e financiadores em um projeto de pesquisa específico e fecha a lacuna entre pesquisa básica e clínica, fornecendo financiamento para pesquisa translacional.

Em um artigo no seu blog de Leis e Biociência, a Universidade de Stanford cita dois exemplos bem sucedidos: a Molecule e a VitaDAO. 

A Molecule é uma empresa suíça baseada em Web3, lançada com o objetivo de organizar comunidades de pesquisadores, pacientes, financiadores e outros stakeholders em DAOs – e a VitaDAO foi a primeira DAO formada a partir dessa iniciativa, com mais de 200 projetos criados e US$ 3 milhões investidos em pesquisa – além de mais de 1.300 detentores de tokens, incluindo a Pfizer. O token, $VITA, pode ser comprado através de criptomoedas como ETH com um valor de mercado de US$ 20 milhões.

Ciência

“Uma das vantagens de trabalhar com um DAO como o VitaDAO do ponto de vista de um pesquisador é que os pesquisadores obtêm informações sobre como as bolsas de pesquisa são votadas e podem ver e compreender o processo de revisão, que geralmente acontece a portas fechadas”, escreve o blog da universidade. Do ponto de vista de um financiador, “a vantagem é que eles têm poder de decisão sobre o destino do financiamento para a pesquisa, ao contrário dos subsídios governamentais, onde a maioria dos contribuintes nem sequer tem conhecimento de que parte do dinheiro dos seus impostos vai para uma pesquisa específica”.

Paul Kohlhaas, cofundador da Molecule, explica ainda que nesse modelo, grandes empresas de biotecnologia podem analisar o portfólio de DAOs específicos e até mesmo suas patentes. “Então, se encontrarem algo interessante, podem buscar colaboração com os pesquisadores e o DAO ou procurar licenciar ou comprar a PI (Propriedade Intelectual)”, beneficiando todos que participaram do processo de criação – incluindo quem adquiriu tokens dessa pesquisa.

Desafios e Considerações para a DeSci

No entanto, como qualquer inovação, a DeSci também enfrenta desafios. O MIT Sloan Review destaca a necessidade de estabelecer padrões e protocolos claros para garantir a qualidade e a confiabilidade da pesquisa descentralizada. Além disso, é preciso evoluir os debates em relação aos direitos de propriedade intelectual, uma vez que ainda é possível que instituições tradicionais reivindiquem grandes partes da propriedade intelectual.

“Importante destacar que DeSci é um ecossistema em expansão, ainda é testado caso a caso. A maioria dos projetos DeSci (78%) teve início no quarto trimestre de 2021, coincidindo com o pico de alta do mercado cripto”, afirma Tatiana Revoredo em seu artigo publicado no site. 

Apesar disso, várias startups e empresas já estão operando com a DeSci e promovendo a ciência aberta. Por exemplo, a Pfizer tem seu próprio braço de venture e investe em empresas de tecnologia e saúde, como a Capstan Therapeutic. Além disso, a deScier, liderada por Maria Goreti Freitas (que deu um entrevista massa para o Crypto Times aqui), é uma organização de ciência descentralizada que busca promover uma ciência disruptiva e democrática. Através da DeSci, é possível investir em projetos científicos complexos através de tokens, NFTs científicos e outros instrumentos digitais.

A DeSci representa uma revolução na forma como a ciência é conduzida e financiada. Com a ajuda da tecnologia blockchain, a pesquisa científica pode se tornar mais aberta, colaborativa e resistente à censura, abrindo novas possibilidades para descobertas e inovações.

Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF

Comments are closed, but trackbacks and pingbacks are open.