Quais histórias guardam os prédios históricos que cruzamos no cotidiano? O Bairro do Recife, onde nasceu o Porto Digital, um dos principais distritos de inovação da América Latina, é um testemunho da regeneração urbana da cidade. Suas ruas e avenidas abrigam uma diversidade de edifícios, cada um carregando consigo memórias, causos e identidades que moldaram a economia e a cultura da região.
Grande parte dos prédios atuais foram construídos durante os Planos de Melhoramentos e Reforma do Porto e do Bairro do Recife (1909-1926), que deram origem ao conjunto de arquitetura eclética.
Ao longo do século 20, esses prédios testemunharam o apogeu econômico do Centro, com sedes de importantes empresas brasileiras e estrangeiras. Desde a criação do Porto Digital, em 2000, muitos desses prédios ganharam novas utilizações empresariais, comerciais, sociais e culturais.
Contudo, alguns outros ainda aguardam uma inserção nesse novo contexto de atividades da ilha. Isso não apaga, porém, as histórias que ali existiram. Por isso, o Jornal Digital inicia a série “Memórias no Concreto: Histórias de prédios do Bairro do Recife” para jogar luz em diferentes imóveis, respondendo a pergunta que iniciou o texto.
Avenida Marquês de Olinda, 35
Iremos começar por um logradouro bastante próximo do Marco Zero: Avenida Marquês de Olinda, 35. Localizado por trás do prédio espelhado do Grupo João Santos, esse imóvel de 574 m² foi ocupado por uma grande empresa do setor de transporte marítimo e aéreo logo após a finalização das reformas, em 1926.
A Herm. Stoltz & Cia foi fundada em 1884 com a chegada do alemão Hermann Stoltz ao Rio de Janeiro. A firma se desenvolveu rapidamente, abrindo filiais em São Paulo e no Recife, tendo representantes em todas as capitais. A sede internacional ficava em Hamburgo.
O serviço da Stolz cumpria todas as tarefas que uma agência de viagens realiza hoje: recepcionava viajantes e reservava hospedagens, embarcações e voos. As companhias marítimas que vendiam passagens pela Stolz eram em maioria alemães, como a Hugo Stinnes Schiffahrt e a Norddeutscher Lloyd.
Com o maior desenvolvimento da aviação, a empresa passou a ser acionista e uma das fundadoras da companhia aérea Syndicato Condor S/A, que foi uma subsidiária da alemã Deutsche Luft Hansa – uma das mais antigas companhias de aviação do mundo.
Berço do Zeppelin no Recife
A Herm Stoltz esteve envolvida com um episódio que até hoje marca o imaginário histórico e cultural do Recife: a vinda do dirigível alemão Graf Zeppelin na década de 1930. A capital teve a primeira estação para dirigíveis da América do Sul, localizada no Campo do Jiquiá.
A vinda do dirigível ocorreu pela atuação do Governo de Pernambuco, que ofereceu subsídios para a construção da estação. A maior parte do material necessário para a construção da torre de atracação foi importada da Alemanha com ajuda da Stolz.
De acordo com o autor alemão Sylk Schneider, a firma enviava telegramas à Luftschiffbau Zeppelin, empresa líder no projeto de construção de dirigíveis, para explicar sobre as dificuldades em conseguir tanques de petróleo. Essas cartas estão até hoje no acervo da Luftschiffbau, bem como a tradução de um pedido do então governador de Pernambuco, Carlos Cavalcanti Lima.
Em visita ao Campo do Jiquiá, o jornal “Diário da Manhã“, do Recife, publicou em 21 de maio de 1930: “Os galpões armados na zona sudoeste encontram-se com os seus serviços concluídos, tendo-se encarregado dos mesmos a firma Herm Stoltz & Cia. Destinam-se à hospedagem dos tripulantes do dirigível”.
Entre 1930 e 1937, período em que o Recife esteve na rota do Graf Zeppelin, era na sede da Avenida Marquês de Olinda que os bilhetes eram comprados. Naquela época, quase todos os passageiros do dirigível se hospedavam no hotel mais moderno do Recife, o Hotel Central.
Quem passou pelo prédio da Marquês foi Hugo Eckner, o comandante do Zeppelin, após o primeiro pouso na cidade. Neste local, ele recebeu o correspondente da agência de notícias United Press, com quem trocou impressões sobre a viagem, a primeira feita para a América do Sul, informando seus planos para operações de dirigíveis e hidroaviões.
Segunda Guerra Mundial
Com a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha, em 1933, o Graf Zeppelin passou a estampar uma suástica em sua cauda. Membros do Partido Nazista de Friedrichshafen chegaram a visitar o Recife pelo dirigível.
Sendo uma empresa com fortes vínculos com a Alemanha, a Herm Stoltz & Cia passou a colaborar com a rede de espionagem do Terceiro Reich no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial.
A sede do Recife participou desta curiosa trama. O gerente e sócio Hans Sievert, um alemão naturalizado brasileiro, de 37 anos, tinha contato direto com as lideranças dessa rede de espionagem, antes da entrada do Brasil no conflito.
Hans Sievert convenceu um amigo pernambucano, o engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida, a viajar até Natal (RN) para descobrir informações sobre uma nova base aérea que estava sendo construída. O voo de Luiz Eugênio foi pago pela Herm Stoltz.
Era comum que engenheiros aparecessem buscando trabalho nas obras, então Eugênio logo se infiltrou na equipe, conseguiu acesso à planta e montou o relatório repassado ao Terceiro Reich. Esse interesse existia por conta da posição estratégica da cidade no Atlântico – Natal e Recife foram as capitais brasileiras que receberam bases militares dos Aliados.
Esse caso teve repercussão nacional. Interrogado pela Polícia, Luiz Eugênio admitiu ter feito o relatório, mas alegou inocência pois na época do ocorrido (1941) o Brasil ainda estava neutro na Guerra, portanto não teria cometido traição.
Quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha, em 1942, as propriedades da família Stoltz foram desapropriadas. Grande parte dos documentos da Stoltz em Hamburgo foram destruídos. Isto contribuiu para que o papel da empresa no desenvolvimento da aviação fosse esquecido.
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos
A sede do Recife foi arrendada ao Banco do Brasil, que ficava bem ao lado (onde hoje está o prédio do Grupo João Santos). Em 1944, os jornais passaram a publicar editais da concorrência pública para a venda dos imóveis da empresa.
Entre as décadas de 1950 e 1960, o prédio passou a abrigar o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, uma entidade criada durante a Era Vargas. Não existem registros do logradouro entre as décadas de 1970 e 1980, período de forte esvaziamento e degradação do Bairro do Recife.
Atualmente, o local é nomeado como Edifício João Santos Filho, homenageando um empresário do Grupo João Santos, e guarda um passado que mescla inovação, influência internacional e acontecimentos marcantes na história do Recife.
Na próxima matéria da série “Memórias no Concreto: História de Prédios do Bairro do Recife”, iremos explorar outro edifício que, como este, ajuda a contar um pouco da rica trajetória desse bairro.
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