O cinema pernambucano, que alcançou prestígio internacional com produções como O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, premiado no festival Cannes em 2025, está celebrando o seu centenário nesta década.

Embora haja controvérsias sobre o ano exato de origem, é consenso entre pesquisadores que os anos 1920 marcam o início de uma produção cinematográfica consistente no estado, ajudando a contar a história por meio das telas.

A versão mais difundida entre os estudiosos aponta 1925 como marco inaugural, com o lançamento de “Retribuição”, filme mudo dirigido por Gentil Roiz e produzido pela Aurora-Film. A trama acompanha uma jovem que, ao receber do pai doente um mapa do tesouro, se une ao galã da história para enfrentar bandidos interessados na fortuna.

Sucesso de público nos cinemas de rua da capital, a produção é considerada o ponto de partida do chamado Ciclo do Recife, uma das mais vibrantes fases do cinema mudo no Brasil.

Documentários

Vinheta de abertura dos filmes da Pernambuco-Film trazia a criança Adriana, filha de um dos donos da empresa

No entanto, anos antes, Pernambuco já contava com produções cinematográficas, em especial documentários de natureza institucional. A empresa Pernambuco-Film, criada pelos italianos Ugo Falangola e J. Cambieri, foi contratada pelo governo do então governador Sérgio Loreto para registrar, em imagens em movimento, o processo de modernização do Recife.

Um desses primeiros registros teria sido “Pela Saúde”, documentário filmado por A. Grossi sobre obras de saneamento realizadas na capital e em municípios do interior. Em 1924, a Pernambuco-Film produziu “Recife no Centenário da Confederação do Equador”, sobre os 100 anos do movimento separatista que tentou instaurar uma república independente no Nordeste.

No mesmo ano, a produtora entregaria o que viria a ser uma das peças mais valiosas do acervo audiovisual histórico da cidade: “Veneza Americana”, documentário encomendado para mostrar ao público as ambiciosas obras de Sérgio Loreto – sobretudo no Porto do Recife, no Bairro do Recife, e na abertura da Avenida Beira Mar, em Boa Viagem.

O Recife em transformação

Cena mostra o Porto do Recife no filme Veneza Americana, da Pernambuco-Film

A gestão de Loreto ficou marcada por investimentos em infraestrutura com vistas à ampliação das atividades portuárias e ao acesso às praias da Zona Sul. Um dos principais feitos foi a construção de uma linha de bondes até Boa Viagem, que demandou a criação de uma ponte metálica entre a Ilha de Antônio Vaz e o Pina, um feito ousado para os padrões da época.

As vinhetas de abertura e encerramento dos filmes eram sempre estreladas pela menina Adriana, filha de Ugo Falangola.

Movimentação em frente ao navio Gelria no Porto do Recife no filme ‘Veneza Americana’

No filme, o Porto do Recife é o grande protagonista. A câmera acompanha a chegada do navio Gelria, com imagens panorâmicas captadas de trilhos recém-instalados sobre os arrecifes. Em sequência, o governador visita o paquete – nome dado aos navios de grande porte movidos a vapor, que transportavam passageiros, cargas e correspondências.

Para o olhar contemporâneo, as imagens podem parecer aleatórias. Mas, como mostra a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo, elas obedecem a uma lógica narrativa precisa: eram uma resposta direta às críticas políticas sobre a viabilidade das obras.

Cena do governador Sérgio Loreto e sua comitiva embarcando em navio no filme ‘Veneza Americana’

Existia uma narrativa, implicada pela oposição, de que as obras do Porto eram envoltas de problemas e que não iriam solucionar as condições precárias para consolidá-lo enquanto um grande porto brasileiro.

Mostrar Loreto e sua comitiva subindo e descendo a rampa de acesso entre o navio e o cais era uma forma de demonstrar, visualmente, que o novo porto comportava embarcações de grande calado e oferecia estrutura adequada para passageiros e mercadorias.

Cena da Avenida Beira Mar, atual Avenida Boa Viagem no filme Veneza Americana

Em relação à Avenida Beira Mar, muitos consideravam a obra “faraônica” e alegavam que as águas de Boa Viagem eram impróprias para banho devido à poluição – antes, os banhos ocorriam em áreas mais centrais, como na Praia do Brum ou na Casa de Banhos.

“Veneza Americana” responde a essas críticas com imagens da praia já urbanizada: asfalto, trilhos, postes de iluminação elétrica e, acima de tudo, cenas de crianças e mulheres se banhando no mar – um recado claro sobre o “renascimento” daquela orla.

Cena de banho do mar no filme Veneza Americana

De volta ao Porto, o filme segue com registros da ponte-giratória em funcionamento no Bairro do Recife e se encerra com imagens da Grande Exposição de 1924, realizada no recém-inaugurado Quartel do Derby, que exibia os principais produtos do Estado.

Um dos trechos mais instigantes e lúdicos do filme surge quando o cinegrafista sobe nos brinquedos, adotando o ponto de vista de quem os vivencia, um recurso que aproxima o espectador da experiência sensorial do parque.

Cena de cinegrafista brincando nos brinquedos da Grande Exposição de Pernambuco, no Derby, no filme Veneza Americana

O cinema como legado

Ao utilizar o cinema como ferramenta de propaganda institucional, o governo de Loreto acabou estimulando a criação de uma indústria cinematográfica local. Na época, a produção audiovisual exigia equipamentos caros e estrutura difícil de bancar exclusivamente com recursos privados.

Os equipamentos da Pernambuco-Film acabaram sendo vendidos para a Aurora-Film, que, a partir de 1925, se tornaria o principal polo de ficções cinematográficas no Estado. De lá sairiam não apenas Retribuição, mas também títulos como Jurando Vingar (Ary Severo), Aitaré da Praia (Gentil Roiz) e A Filha do Advogado (Jota Soares).

Imagem de Retribuição (1925), com direção de Gentil Roiz, do Ciclo do Recife (Crédito: Reprodução)

Entre 1924 e 1930, o cinema pernambucano viveu um período de intensa atividade. Foram cerca de 50 filmes – curtas e longas – produzidos por ao menos 12 produtoras, como Planeta Filmes, Iate Filme, Veneza Filme, Liberdade Filme, Olinda Filme, Spia Filme, Goiana Filme e Vera Cruz. Um feito notável, considerando-se as limitações técnicas e financeiras da época.

Já no final da década de 1920, a produção de críticas também vai se desenvolvendo na imprensa local. Os textos iam crescendo, falando também sobre linguagem e tecnologia do cinema.

A era do cinema mudo local foi interrompida por dois fatores principais: a dificuldade de distribuição nacional, que impedia que os filmes tivessem retorno financeiro, e, sobretudo, a chegada do cinema falado, que consolidou a hegemonia das produções hollywoodianas no mercado brasileiro.

Hoje, parte importante dessa história está preservada na Cinemateca Pernambucana, mantida pela Fundação Joaquim Nabuco, onde é possível assistir “Veneza Americana”. Outro documentário da época que está por lá é “As grandezas de Pernambuco” (Olinda-Film, 1926). 

Imagem de Retribuição (1925), com direção de Gentil Roiz, do Ciclo do Recife (Crédito: Reprodução)

O Porto Digital, herdeiro direto desse impulso de modernização, abriga o Portomídia, hub de economia criativa com estúdios utilizados por produções como “Boi Neon” (2015), de Gabriel Mascaro, “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. 

No alto do edifício que sedia o Núcleo de Gestão do Porto Digital, no Cais do Apolo, existe o Cinema do Porto, administrado pelo Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, sendo uma sala voltada para exibições, mostras, estreias e debates. Um gesto simbólico: mais de um século depois, o Recife segue olhando para a cidade com olhos de cinema.

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