A revolução dos carros elétricos parecia estar ao virar da esquina, mas uma série de retrocessos por parte das montadoras globais têm lançado dúvidas sobre o futuro dessa transição – pelo menos no curto prazo. A resistência dos consumidores em pagar um preço médio mais alto pelos modelos elétricos, aliada a uma série de outros fatores econômicos e políticos, tem levado as empresas a repensar suas estratégias de investimento e expansão.
A Ford, uma das gigantes do setor automotivo, recentemente anunciou o adiamento de cerca de US$ 12 bilhões em investimentos destinados à produção dos electric vehicles (EVs). A decisão reflete uma necessidade de reavaliar a demanda do mercado e as condições econômicas globais. Além disso, a pausa nos trabalhos de uma planta de baterias de US$ 3,5 bilhões em Michigan sinaliza uma preocupação com a viabilidade competitiva a longo prazo.
Os executivos da montadora enfatizaram que a ideia não é reduzir gastos em futuros modelos elétricos, mas aumentar a sua capacidade de produção (e os seus gastos) de forma mais gradual do que anteriormente planejado. “Não estamos nos afastando de nossos produtos de segunda geração. No entanto, estamos analisando o ritmo de capacidade que estamos implementando. Vamos impulsionar parte desse investimento”, garantiu o CFO da companhia, John Lawler.
Essa tendência não é exclusiva da Ford. A General Motors (GM) também mostrou sinais de hesitação, adiando a inauguração de uma fábrica dedicada à produção de caminhões elétricos. De acordo com a empresa, as versões elétricas do Chevrolet Silverado e do GMC Sierra só seriam fabricadas a partir do fim de 2025, um ano depois do planejado originalmente.
Embora os detalhes específicos não estejam claros, a decisão sugere uma resposta cautelosa à desaceleração aparente na procura por EVs. No anúncio oficial, a montadora citou a necessidade de “gerenciar melhor o investimento de capital e, ao mesmo tempo, alinhar-se com a evolução da demanda de EV”.
O CFO da Mercedes, Harald Wilhelm, chegou a dizer que o mercado de EV é um “espaço bastante brutal” após a montadora perder quase 6% de valor em ações. “Dificilmente posso imaginar que o status quo atual seja totalmente sustentável para todos”, disse Wilhelm, segundo a Reuters.
A tendência de desaceleração na demanda por EVs também é impulsionada pelas altas taxas de juros nos EUA e em outras regiões – um obstáculo significativo para a adoção em massa de veículos elétricos. Apesar das vendas estarem crescendo (subiram 14,3% em setembro na União Europeia e 22% na China), o fundo negociado em bolsa iShares Self-Driving EV and Tech despencou mais de 24% no último trimestre.
“Estamos tomando medidas imediatas para aumentar a lucratividade de nosso portfólio de veículos elétricos e nos ajustar à desaceleração do crescimento no curto prazo”, disse Mary Barra, CEO da GM, aos analistas.
A Tesla, liderada por Elon Musk, também expressou preocupações semelhantes. “A grande maioria das pessoas que compram um carro é uma questão de pagamento mensal. Se as taxas de juros permanecerem altas ou subirem ainda mais, será muito mais difícil para as pessoas comprarem o carro”, explicou o bilionário sul-africano, em uma apresentação para os acionistas. Musk indicou que a construção de uma fábrica no México poderia ser adiada para além de 2025, citando a necessidade de avaliar a economia global (você lembra que queriam trazer essa fábrica pra cá?).
Na Europa, a coisa não é muito diferente. O banco de investimento UBS reduziu sua previsão de participação no mercado global de veículos elétricos a longo prazo de 54% para 47% em 2030. Os analistas preveem uma desaceleração no crescimento das vendas de veículos elétricos na Europa 10% e 15% em 2024, por culpa da:
- Elevada incerteza do consumidor;
- Redução dos subsídios;
- Maiores descontos para veículos com motor de combustão interna;
- Falta de modelos no segmento “acessível” abaixo de US$ 40 mil.
A Hertz, uma das maiores empresas de aluguel de carros, também está recalibrando seus planos de eletrificação da frota. A empresa citou cortes de preços da Tesla (que impactou negativamente o valor de revenda de seus veículos), e custos de reparo mais altos do que o esperado como razões para uma adoção mais lenta de EVs.
A falta de uma infraestrutura de carregamento é outro obstáculo: a instalação do carregador doméstico normalmente custa algumas centenas de dólares, mas o preço triplica facilmente se o proprietário precisar de nova fiação, painéis e tomadas. A Hyundai chegou a oferecer um carregador grátis para atrair compradores, junto com um desconto para instalá-lo, uma promoção no valor de cerca de US$ 1.100.
E como se não bastassem os desafios econômicos, a adoção de carros elétricos nos Estados Unidos (e provavelmente no mundo) tem sido também influenciada pela polarização nas questões políticas. Lá na gringa, onde o povo já está em “modo eleição FULL”, como o atual presidente e candidato à reeleição Joe Biden é à favor da transição (através de subsídios à indústria e extensão de créditos), rivais republicanos automaticamente se colocaram do lado contrário, levantando preocupações sobre a perda de empregos e uma hipotética imposição de futuras vendas de veículos com emissões zero – que já rolou na Califórnia.
Aí, por causa disso, para cada cinco democratas que possuem um VE, há dois republicanos, segundo um levantamento da Strategic Vision sobre compradores de veículos novos. Enquanto os primeiros dão prioridade aos carros “environmentally friendly”, os segundos priorizam o desempenho dos motores ou prestígio da marca. Se pegarmos os dados das eleições de 2020 e a adoção de elétricos no final de 2022 por estado, as contas batem.
Ao entrelaçar esses diversos fios, percebe-se que a desaceleração nos planos de expansão de carros elétricos pelas montadoras é uma resposta multifacetada a desafios que vão desde a relutância dos consumidores até questões políticas e econômicas. Esses obstáculos sublinham a complexidade da transição para a mobilidade elétrica e sugerem que o caminho para a adoção em massa de EVs pode ter mais curvas e obstáculos na pista do que o previsto inicialmente.
A interseção de economia, política e percepção do consumidor está moldando o futuro dos veículos elétricos de maneiras inesperadas.
Renato Mota é jornalista, e cobre o setor de Tecnologia há mais de 15 anos. Já trabalhou nas redações do Jornal do Commercio, CanalTech, Olhar Digital e The BRIEF
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