Quando se trata de urbanização, uma simples canetada pode impactar profundamente o futuro de uma cidade e da sua população. A década de 1970 foi marcada por amargas decisões para o rumo urbanístico do Recife. Nesse período, surgia o que hoje conhecemos por Comunidade do Pilar.
Foi nessa época que a estatal PORTOBRÁS – Empresa de Portos do Brasil, criada pelo regime militar, decidiu desapropriar e demolir seis quadras no Bairro do Recife, localizadas entre a antiga Fábrica da Pilar e o Moinho. A ideia era implantar um projeto de expansão do Porto do Recife, o que acabou não avançando.
Eis que, ao longo dos anos, a crise econômica brasileira e o déficit habitacional do Recife fizeram com que esse espaço fosse sendo ocupado gradativamente por famílias de baixa renda.
Era o começo da história da Comunidade do Pilar, área localizada no Centro do Recife que clama por cuidados do poder público por suas habitações precárias, falta de infraestrutura e população carente, sendo um espelho do desafio da cidade no âmbito das políticas habitacionais. Com a criação do Porto Digital – parque tecnológico onde está localizada a Comunidade do Pilar -, os moradores da localidade começam a receber ações de formação, empreendedorismo e iniciativas socioeconômicas.
Segregação na formação do Bairro do Recife
Embora a Comunidade do Pilar remeta à segunda metade do século 20, podemos dizer que essa área do Bairro do Recife tem um histórico de desvalorização. Ainda nos primeiros séculos da colonização, o principal vilarejo da ilha tinha três acessos assim denominados: “Porta da Terra” (o extremo sul, com acesso à Olinda), “Porta do Mar” (acesso ao mar) e “Porta da Balsa” (acesso da ilha ao continente).
Diante dessa configuração, a região localizada ao lado direito do vilarejo ficou conhecida como “Fora de Portas”, uma área desprotegida pelas fortalezas coloniais que servia de caminho do vilarejo para Olinda. Confira no mapa abaixo:
Foi na área “Fora de Portas” que foi construído o Forte de São Jorge, usado pelos portugueses para tentar resistir à invasão dos holandeses. O Forte foi demolido e, nos seus alicerces, foi construída a Capela de Nossa Senhora do Pilar (entre 1680 e 1683), que permanece lá até hoje.
Ao longo dos anos, a região “Dentro de Portas” passou a sediar prédios para atividades econômicas ligadas ao Porto, como o comércio, enquanto a área “fora de portas” recebeu habitações mais modestas, em lotes pequenos, utilizadas por pequenos comerciantes, trabalhadores portuários, da Companhia da Estrada de Ferro e pescadores. Assim, podemos dizer que existe um histórico de divisão “socioespacial” do bairro.
A grande reforma urbana do começo do século 20 no Bairro do Recife não mudou essa configuração, deixando a área “fora de portas” um tanto à parte da modernização. É justamente nessa que está a Comunidade do Pilar, onde as ruínas dos antigos casebres se misturam com as habitações precárias.
Favela do Rato à Comunidade do Pilar
Nas primeiras décadas da sua existência, a Comunidade do Pilar era chamada de “Favela do Rato”. De acordo com Nancy Siqueira Nery, essa denominação se deu pela concentração do tipo de roedor na área.
“Os ratos eram atraídos pela presença de restos do trigo utilizado no Moinho Recife, empresa que esteve instalada no bairro por muitas décadas”, disse, em dissertação “Inclusão Socioespacial de Comunidades Pobres: Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social da Comunidade do Pilar Bairro do Recife”.
Segundo Nery, uma vez que o casario colonial foi demolido na década de 1970, a área atraiu uma população urbana expulsa dos seus lugares de origem, incluindo aí o êxodo rural e também aqueles que sofreram com as demolições de Santo Antônio e São José para a abertura da Avenida Dantas Barreto.
Na década de 1990, com a requalificação do Bairro do Recife, a desativação de cortiços e casas de prostituição também deve ter impactado na ocupação dessa comunidade.
Uma outra versão aponta que a denominação “Favela do Rato” fazia referência à própria condição precária dos moradores que tinham de competir com os roedores pelo espaço. Independente do motivo, essa conotação negativa fez com que os habitantes solicitassem a mudança do nome à Prefeitura do Recife, o que ocorreu no ano de 2000.
O nome atual faz menção a já citada Igreja de Nossa Senhora do Pilar, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e restaurada em 2009.
O achado arqueológico
No final dos anos 2000, a Prefeitura do Recife anunciou que as então 460 famílias presentes na Comunidade do Pilar seriam beneficiadas por um Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social da Secretaria de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente.
O projeto inicial previa a construção de 420 moradias (depois atualizadas para 588) que seriam “edificadas seguindo um projeto arquitetônico diferenciado com os mesmos elementos construtivos do Bairro do Recife Antigo.”
Em 2010, durante a escavação para erguer quadras, uma equipe da Fundação Seridó fez achados arqueológicos importantes, incluindo cemitério com pelo menos 70 ossadas.
De 2014 a 2020, a UFRPE, por meio da Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento, realizou estudos de pesquisa e mapeamento. Nesse período, foi possível contabilizar 40 mil fragmentos: cerâmicas, peças de jogos, tijolo holandês, garrafas de bebidas, perfume, remédio, moedas, bala de canhão, escova de dente e objetos encontrados, além de 100 ossadas.
De acordo com os pesquisadores, o antigo cemitério remete ao século 17. Esse pode ser o maior cemitério arqueológico já encontrado no Brasil. Muito do que ocorreu nas movimentações da época do “fora de portas” estava escondido bem debaixo do solo. Esse achado fez com que a Prefeitura precisasse definir os próximos passos dos habitacionais – até o momento, 192 foram entregues.
Pilar e Porto Digital
Seja pela vulnerabilidade social ou pela riqueza arqueológica, o Pilar demanda atenção do poder público e de toda a sociedade civil. Em 2023, o Porto Digital e o Senac lançaram o Pilar Universitário, um programa completamente gratuito de universalização do ensino superior para os habitantes da comunidade.
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Emannuel Bento é jornalista pela UFPE, com passagens pelo Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio
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