Parecia um cenário de guerra. No piso, cimento grudado. Por todo lado, entulhos. Ar- condicionado quebrado. Rede elétrica destruída. O espaço escolhido pelos sócios para a nova sede da In Forma Software ficava no Edifício Alfredo Fernandes. Era um imóvel construído em 1945, ícone do estilo art déco no Recife Antigo. Tinha charme, boa localização e o principal: aluguel barato. Com zero capital para reformas, os sonhadores que iriam criar ali uma instituição que se tornaria uma referência nacional, foram à luta. As doações para a reconstrução da sala empresarial – um equipamento para raspar o cimento endurecido e a reinstalação do sistema elétrico – partiram dos primeiros clientes. À época, o Alfredo Fernandes era parte de um bairro marginalizado como lugar de moradia e convivência, improvável para abertura de empresas. Ainda não existia a lei de incentivos fiscais para quem optasse por desenvolver um negócio na área. No início dos anos 2000, o Porto Digital se mostrava apenas como uma ideia ousada de poucos a ser posta em prática. Hoje, é o maior parque tecnológico urbano e aberto do Brasil, com mais de 350 empresas e 17 mil profissionais. A primeira reunião do Porto Digital teve a participação de 20 sonhadores. Ismar Kaufman era um deles.
Passados 24 anos da fundação do Porto Digital, Kaufman faz um balanço do passado ao dizer que a instituição foi o triunfo de uma força multifatorial que acreditava no poder do coletivo. O resultado de vários acontecimentos combinados que ajudaram para que os melhores atores estivessem no palco em 2000 e fizessem acontecer. A imagem é dele: antes da fundação oficial, havia quem fizesse a fantasia, a coreografia, os ensaios, e, quando o drama foi escrito, todo o aporte havia sido preparado.
Do passado, saca o aprendizado para servir como referência para quem quer reproduzir a experiência. Sobre o futuro, é taxativo ao dizer: “A gente precisa resgatar a capacidade de pensar juntos”. Retomar o sentimento de unidade que envolveu e prosperou com os pioneiros.
“Todo mundo sabia que seria algo importante para a história da cidade. Estávamos conscientes de que participávamos não só da criação de uma instituição; era um movimento”. Havia fatores convergentes e os atores concordaram que as forças se somassem no sentido de fazer dar certo o projeto. “Os atores que estavam presentes naquele momento encaravam aquilo com uma missão social”, diz ele, que é CEO e fundador da In Forma, a primeira empresa que decidiu mudar-se para a área do Porto Digital (“A gente brinca dizendo que mudamos quando ainda era tudo mato”). Empreendedores como ele e as suas respectivas empresas foram a base do que hoje é um movimento social, educacional, desenvolvimentista e econômico. Há mais de duas décadas compunham um ecossistema inovador, ambiente já descrito como “ecossistema” quando a palavra sequer era usada no mundo dos negócios.
“Precisamos dizer que essa é a história coletiva de vencedores. Considero que esse aspecto ficou fora da narrativa oficial”, pontua ele, falando sobre a base empresarial.
Ismar Kaufman é um pensador com visão crítica apurada (para ele, é preciso mudar a narrativa da fundação do Porto Digital e se dizer que o Porto Digital não começou quando foi fundado – começou antes. Dono de uma trajetória sólida na área de tecnologia (“Desafio qualquer empresa do mundo que tenha a mesma composição societária há mais de 30 anos”) e de uma carteira com cerca de 50 clientes de grande porte (“Tem uma brincadeira que faço sempre, dizendo que meu sonho é um dia concorrer com alguém que não patrocina a Fórmula 1”). Ele e os três sócios lidam com um mercado que fatura centenas de milhões de dólares. Pelo que representa entre tantas lideranças embarcadas no Porto Digital, Ismar Kaufman é personagem da quinta reportagem da série Lideranças Tech, publicada pelo Jornal Digital.
O olhar para o cliente – ou seja, as empresas
Na visão dele, o “pensar juntos” é deixar de olhar para si mesmo e para a sua empresa. É quebrar a lógica de vivenciar o sucesso individualizado nos negócios e o pensamento limitante do “agora vou cuidar da minha vida”. “Acho que o sucesso é inimigo da união. Não pode ser assim e todo mundo se acomodar e cuidar de si”.
Para hoje e para os anos que se seguem, Kaufman defende a volta de uma política integradora em que não só as lideranças políticas sejam evidenciadas dentro do ecossistema. Para ele, é o momento de reintegrar e revalorizar as lideranças empresariais, e até colocar as lideranças empresariais acima da liderança política. Para fundamentar seu pensamento, faz uma analogia explicativa das mais didáticas: “Para mim, é como se a liderança empresarial fosse o cliente e a liderança política fosse o patrocinador”. Em outras palavras, o mais importante é olhar para o cliente.
Kaufman diz que este é o momento ideal para que se resgate essa noção de coletivo. Da mesma forma que aconteceu lá atrás, quando um grupo de líderes alavancou o Porto Digital tendo uma base de suporte para esse feito. Lembra ele que foi uma estrutura sólida, composta por empreendedores, muitas vezes sem capital e sem garantias, que confiaram e acreditaram no projeto e na ideia de que fariam “algo importante” ao ponto de se mudarem para o bairro do Recife Antigo para recomeçar. Eles deram a sustentação necessária para a ação coordenada entre a academia (vide Universidade Federal de Pernambuco e centros de pesquisa em tecnologia em pleno funcionamento do Estado), o governo estadual e o empresariado – modelo conhecido como “Triple Helix”. Não haveria Porto Digital e case de sucesso se esses empreendedores não tivessem confiado.
Hora de pensar nos próximos dez anos
Agora não pode ser diferente. Para Kaufman, é preciso reformular o movimento articulador pensando nos próximos dez anos e, numa análise produtiva, colocar-se à mesa comparações com casos de sucesso que nos últimos anos têm se destacado no Brasil, como vem sendo visto em Florianópolis (SC).
As lições do passado, com vistas para o crescimento pós-2024 para o Porto Digital, podem não ser tão conhecidas pelos mais jovens, mas Ismar Kaufman sabe cada uma decorada. A iniciativa da UFPE de criar empresas de base tecnológica dentro do campus (algo que hoje é chamado de startups), por exemplo, consolidou a ideia de um ecossistema de ideias inovadoras e produtivas. Naquela época, final dos anos 1990, eram dez dentro desse sistema.
Ismar não acredita em uma única fórmula para justificar o “gigantesco sucesso do Porto Digital”; o que deve ser considerado é a soma de fatores por qualquer estado ou instituição que queira replicar o trajeto do Porto Digital. “Outros estados tentaram fazer no formato monofatorial. Algo em que o governo compra um prédio e cria um centro digital e não deu certo; outros tentaram construir polos tecnológicos a despeito do governo e também não prosperaram.”
Líderes generosos e mediadores de conflito como diferenciais
Fatores extraordinários precisam ser levados em conta. A participação de bons líderes, de líderes generosos (como ele classifica) e a visão social do projeto são alguns desses fatores relevantes. Aqui, uma pausa para ele próprio lembrar do ex-chefe Silvio Meira, que tem, além da sagacidade e ideias criativas, a generosidade como parte de sua personalidade – o que faz com que projetos coletivos sejam de interesse maior. Na visão de Ismar, a presença de líderes “generosos” é essencial para o sucesso de um projeto semelhante ao do Porto Digital. Contar com mediadores de conflitos é outro ponto de valor porque, em certas ocasiões, os interesses são contraditórios e se busca quem tenha a habilidade de conciliação.
“A primeira coisa que eu acho muito diferente na história de Pernambuco quando comparado com todas as outras histórias é que lá no começo a gente criou um sistema de resolução de conflitos sem ruptura”, conta ele, recordando bastidores daquilo que ele próprio viveu. “Esse (a capacidade de mediação) foi o grande diferencial. A gente conseguiu um sistema em que cabiam os interesses da Universidade, da Prefeitura e do Governo do Estado e precisávamos acomodar todos esses interesses”.
Após a conclusão do seu mestrado, Kaufman foi pesquisador auxiliar do professor e cientista Silvio Meira, entre 1992/1993, e tem um panorama completo do que o Porto Digital foi e por onde pode crescer. Ismar Kaufman é um frasista, e longe de adotar um tom professoral, impressiona com arremates para se fazer entender. “A gente pensava: não tem farinha para todo mundo e está todo mundo interessado no pirão. Então, a gente conseguiu estabelecer um método de resolução de dizer ‘olha, dessa vez você come o pirão; o próximo é meu”. O método teve sucesso.
O coletivo com potencial de crescimento
As pessoas que não tiveram pensamento coletivista de revezar no prato do pirão, comenta, acabaram saindo do ecossistema logo no início, ainda que anos depois tenham voltado, reconhecendo os resultados. Eles, frisa Ismar Kaufman, “foram vencidos e cederam”, hoje fazem parte do coletivo que cresce junto. Na prática, com a aposta de poucos empreendedores que apostaram no empreendimento, os primeiros apoiadores do Porto Digital criaram um jeito próprio para atrair estudantes e empreendedores, convencendo-os a ficar no Recife (“transformamos o Porto Digital em um espaço de retenção de cérebros”.)
Ismar faz questão de frisar que o Porto Digital não começou em 2000, como diz a historiografia oficial de sua fundação. “Eu também não comecei no começo”, lá na década de 1990. Para ele, o embrião desta história se deu com a instalação de multinacionais como a IBM e grandes empresas de processamento de dados, como a Procenge, ou ainda como o centro do Bandepe, e empresas como a Elógica. “São outros atores que também fazem parte. Foi quando o poder público descobriu o segmento de TI, na época chamado de informática”. E todos souberam aproveitar o momento econômico. Juntaram-se neste relato de sucesso atores de ponta como o professor Fábio Silva, considerado por Ismar como um “estrategista” que muito contribuiu com a luta encampada por Silvio Meira e absorvida por agentes como o urbanista Cláudio Marinho, então secretário de Ciência e Tecnologia (1999-2006) no Governo Jarbas Vasconcelos.
Ismar Kaufman estava nas primeiras reuniões da fundação do parque tecnológico do Porto Digital, tem na memória um acervo único de como ele foi erguido e sente orgulho de ter sido um dos participantes da empreitada. A In Forma cresceu e continua firme no mercado e conquistou, assim como Kaufman, o respeito de quem gere ou dirige o Porto. “Todos os presidentes do Porto em algum momento vieram visitar a In Forma”. O pioneirismo dele na formação do Porto Digital, como agente transformador social como acreditou ser lá trás, anda de mãos dadas com a bela trajetória da In Forma.
Hoje, para se ter uma ideia do negócio: a empresa é líder no mercado de energia renovável no país. O software da In Forma gere 60% das transmissoras de energia elétrica e 25% da geração da energia renovável brasileira. Com clientes fora do Brasil, teve época em que focou no mercado externo; noutras, no interno. Nenhum deles pequeno porque, como diz, não existem clientes de pequeno porte no setor elétrico. “O nosso negócio é mostrar nossa competência. Se houver reconhecimento para esta competência, está feito o negócio; do contrário, seguimos”. Hoje, Ismar diz-se satisfeito com o caminho que a In Forma trilhou. “Só queria ter crescido mais rápido. Gostaria de ter alcançado a posição que temos hoje há dez anos”.
A In Forma e Ismar Kaufman já não estão mais instalados no Alfredo Fernandes. Mudaram-se para o prédio do ITBC, endereço também da SOFTEX, igualmente no Recife Antigo, mas há algo que liga o pesquisador e empreendedor de hoje àquele do início da década de 2000: Kaufman se mantém empolgado ao falar de inovação e de novos horizontes nos quais a tecnologia alicerça o desenvolvimento social. Continua um sonhador.
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Silvia Bessa é jornalista. Gosta de revelar histórias que se escondem na simplicidade do cotidiano. Venceu três vezes o Prêmio Esso e tem quatro livros publicados
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